Entre janeiro e junho de 2020, foram 1.600 atendimentos para todas as faixas etárias. Do total, 728 dos casos foram de pacientes infantis – uma média de quatro por dia. No mesmo período do ano passado, foram 1.954 e 855, respectivamente. Em todo o ano passado, foram 4.146 atendimentos no total, sendo 1.855 em crianças com até 11 anos.
Além da violência sexual em si, as crianças sofrem uma série de outras violações. “A segunda violência é decorrente da omissão do estado pela falta de políticas públicas para garantir a proteção de sujeitos em formação”, afirma Thaís Dantas, presidente da Comissão de Direitos Infanto Juvenis da OAB-SP. “A terceira violência se dá pela falta de rapidez no processo de interrupção da gravidez e no sistema de saúde.” Por fim, a quarta violência ocorre pelo julgamento moral a que crianças e adolescentes vítimas de violência sexual são submetidos. “Isso mostra que é preciso começar a discutir a violência e a desigualdade de gênero desde a infância”, afirma a advogada.
Mas o que familiares ou responsáveis podem fazer para interromper esse ciclo de violações e violências a partir do momento que tomam conhecimento do abuso? Assim como no caso da garota de São Mateus, no interior do Espírito Santo, que a responsável desconhecia a violência sexual praticada contra a menina, o silêncio é uma característica comum entre as vítimas.
“Às vezes, a mãe demora a perceber que a criança está sendo abusada. Muitas evitam perceber por não acreditarem. É uma situação muito difícil”, afirma Dalka Chaves de Almeida Ferrari, coordenadora do Centro de Referência à Vítima de Violência do Instituto Sedes Sapientiae.
Após tomar conhecimento do abuso ou da violência, segundo a advogada da OAB-SP, é buscar espaços educacionais, comunitários, a figura de vizinhos e conselhos tutelares. “É importante lembrar que, por força da Constituição Federal, a criança e o adolescente devem ser tratados como prioridade absoluta”, afirma. Segundo a advogada, os Conselhos Tutelares são órgãos cujo objetivo é atuar de forma próxima à família e podem ser procurados em casos de violência sexual. Os conselheiros, por sua vez, podem ajudar com a realização do boletim de ocorrência nas delegacias.
De acordo com a advogada, após a realização da denúncia, a criança ou o adolescente precisam relatar o que aconteceu. “Essa é uma das partes mais difíceis do processo”, diz. No entanto, existem mecanismos legais criados para evitar a exposição da vítima. “A lei da escuta protegida faz com que a criança não tenha que repetir diversas vezes a violência que sofreu, o que causa grande sofrimento psíquico”, diz Thaís. “A criança dá o depoimento dela em um local acolhedor com profissionais especializados. A orientação é que não sejam feitas muitas perguntas para não incorrer na revitimização”, explica.
Este processo, segundo a advogada, é que vai gerar a abertura do inquérito. “Busca-se provas ou indícios da violência, o inquérito é aberto e a investigação tem início. Ela pode ser mais rápida ou não dependendo dos documentos e provas reunidas”, explica Thaís. “É um processo relativamente longo.”
Além das instâncias da Justiça, uma criança vítima de violência ou abuso sexual deve contar com o encaminhamento médico, social e psicológico. “Essa etapa é fundamental para contemplar não somente a responsabilização do suspeito, mas, sobretudo, a reparação à vítima”, diz Thaís. A coordenadora do CNRVV (Centro de Referência à Vítima de Violência) do Instituto Sedes Sapientiae, Dalka Chaves de Almeida Ferrari, explica que a rede de apoio à criança se ampliou nos últimos anos. “A família pode buscar orientações em ONGs, nas varas da infância e juventude, nos conselhos tutelares, entre outros locais que a criança tenha vivências.”
Em São Paulo, qualquer hospital geral da rede pública de saúde pode prestar os primeiros atendimentos às vítimas de violência sexual. Nos centros de referência, as vítimas recebem assistência de equipe multidisciplinar, com médicos, psicólogos, assistentes sociais com foco no atendimento humanizado.
De acordo com a secretaria estadual de saúde, elas recebem apoio à prevenção da gravidez decorrente da violência sexual, incluindo a realização de abortos previstos em lei, tratamentos para traumatismos genitais, contracepção de emergência, medicamentos para evitar infecções por HIV, hepatites e outras doenças sexualmente transmissíveis.
Um dos principais serviços de atendimento às vítimas em São Paulo é o Hospital Pérola Byington. O programa “Bem Me Quer”, considerado referência internacional na área assistencial, oferece atendimento 24 horas. Segundo a secretaria estadual de saúde, o programa possui 20 profissionais especializados em ginecologia, pediatria, psicologia, enfermagem, assistência social, entre outras áreas, para atender as vítimas sem a necessidade de apresentar encaminhamento de outro serviço de saúde ou de um boletim de ocorrência.
Em média, 45% dos atendimentos do programa são de vítimas com até 11 anos. Entre janeiro e junho de 2020, foram 1.600 atendimentos para todas as faixas etárias, sendo 728 dos casos de pacientes nessa faixa etária.
No mesmo período do ano passado, foram 1.954 ao todo e 855 infantis. Em todo o ano passado, foram 4.146 atendimentos no total, sendo 1.855 em crianças com até 11 anos. A pasta informou que trabalha para aprimorar o atendimento às vítimas de violência sexual e possui um grupo técnico interdisciplinar de combate à violência para melhorar a assistência.
Passado o atendimento emergencial, a coordenadora do CNRVV explica que se inicia um atendimento clínico. “Se o suspeito busca ajuda, ele é atendido em outro centro. Para a criança, entramos com atendimentos clínicos e terapêuticos. Às vezes, são terapias para toda a família que demoram mais de dois anos. Depende muito da idade da criança”, afirma.
Segundo a especialista, aos poucos, a criança traz sua história. “Há toda uma equipe de atendimento interdisciplinar para a criança não ter nenhuma interrupção ou sequela”, diz Dalka. “Elas têm necessidade de estabelecer um vínculo de confiança, são necessárias algumas sessões de atendimento com o profissional.” A coordenadora do serviço explica que são utilizados bonecos com representações de família para a criança se identificar com os personagens. “Ela monta como é a família e costuma dizer ‘esse eu não quero’, apontando para o pai. Com isso, vai dando dicas para trabalharmos com a interpretação da cena.”
Além disso, a especialista afirma que as crianças são questionadas sobre quem são as pessoas em que mais confiam dentro da casa, de quem sentem medo. “Utilizamos lúdico e o psicológico para colher dados para chegar à confirmação”, diz Dalka. “Ao estabelecer a confiança, ela narra a violência por meio da montagem da cena da revelação. Mas para isso, a criança tem que se sentir à vontade. No primeiro encontro não se chega a essa revelação, ela só vai contar quando se sentir segura.”
Após a revelação, a especialista explica que é preciso trabalhar os vínculos familiares. “Marcamos um encontro com alguém da família e pedimos sigilo para essa pessoa que passará a amparar a criança”, diz. “Nossa expectativa é de que mais ou menos entre dois e três anos, a criança consiga se sentir um pouco mais livre das primeiras angústias.” A família deve manter a frequência nos atendimentos especializados para que sejam acompanhados aspectos como a sociabilidade e o desenvolvimento escolar. “Parte-se de um atendimento individual até que ela seja inserida em um grupo social.”
A conselheira tutelar da Lapa, zona oeste de São Paulo Lilian Calta Belloti Pinheiro trabalha com o atendimento de crianças há nove anos. “Aprendemos que a criança não entende a violência como um abuso, ela vê como um carinho. Muitas vezes, só se descobre a violência após a gestação. É um momento bem complicado”, afirma. Ao receber uma denúncia, a conselheira afirma que o primeiro procedimento é tentar retirá-la do convívio do agressor. “Mas, é muito difícil abordar a questão com a mãe e a família.”
Lilian também acredita que uma criança vítima de violência sexual é abusada diversas vezes. “Na delegacia, no hospital, durante a perícia, no ginecologista, algumas crianças ficam totalmente apáticas, sem conseguir falar uma palavra. Outras desenham e contam tudo que passaram”, diz. “Ao longo desses anos, a gente passa a entender que uma simples assadura, talvez não seja só uma assadura. A criança vive determinadas situações e não entende.”
Ao longo de sua atuação como conselheira, um dos casos que marcou Lilian, é o de uma menina também de 11 anos, levada pela mãe ao Conselho Tutelar da Lapa. “Ela foi abusada por 11 adolescentes e adultos. Estava com a calça toda suja e cheirava muito mal quando a mãe conseguiu tirá-la do local”, conta. “Levei a menina para o Pérola Byington, ela passou na perícia, depois no ginecologista. A mãe estava totalmente desestruturada.”
A conselheira afirma que conseguiu uma ordem judicial para que a menina pudesse ser internada por dias dada a gravidade das condições de saúde. “Ela passou por uma semana de exames, teve duas psicólogas para atendê-la de manhã e duas a tarde. Depois, a família conseguiu se mudar de endereço com a ajuda do conselho”, lembra Lilian. O atendimento psicossocial é garantido, porém, só se mostra eficiente se a Justiça afastar o agressor. “Caso contrário, a criança continua sendo perseguida por medos e fantasmas. Alguns casos podem se arrastar pela vida toda.”
R7