Mari, a despeito da pouca idade e dos absurdos a que se submete, possui sabedoria o suficiente para questionar as recordações pessoais e alheias, além de perceber que nem ela, nem ninguém, se livra tão fácil de traumas graves. Em observação de seu próprio caso, ela pode afirmar, conforme diz a determinada altura da narração, que “expôs o lado mais abjeto de um ser humano”.
SOBRE A AUTORA
Yoko Ogawa nasceu em Okayama, em 1962. Sua vocação leitora foi despertada precocemente por clássicos infantis, graças a um sistema de assinatura de livros de que a família dispunha. Gosta de citar O diário de Anne Frank como uma referência decisiva para perceber a escrita como via possível e necessária de autoexpressão. Estudou escrita criativa e publicou diversos livros, entre ficção e não ficção. Vive atualmente em Nishinomiya, província de Hyogo — nas proximidades de Kyoto.
Arrebatou todos os prêmios referenciais do meio literário japonês. No Brasil, a autora publicou O museu do silêncio (2016); A fórmula preferida do Professor (2017), obra que foi vertida para o cinema pelo diretor Takashi Koizumi, ex-assistente de Akira Kurosawa; A polícia da memória (2021), cuja tradução para o inglês foi finalista do International Booker Prize; e A piscina; Diário de gravidez; Dormitório: três novelas (2023). Todos os títulos foram publicados pela Estação Liberdade.
TRECHOS
“Tudo aconteceu quando eu me preparava para trancar a caixa registradora, apagar as luzes do saguão e ir para os fundos. Ouviu-se de súbito um som seco como o de um objeto pesado chocando-se contra o soalho, e logo a seguir ressoou o grito de uma mulher.” [p. 9]
“Pela janela vi o homem andando pelo píer e sendo tragado pela multidão. Apesar da estatura baixa, de terno ele se destacava entre os turistas. Em determinado momento ele se voltou para trás. Eu acenei, mesmo achando cômico fazê-lo para um homem sem relação comigo e de quem ignorava até o nome. Ele fez menção de erguer a mão para responder ao meu gesto, mas a enfiou no bolso, parecendo constrangido.” [p. 23]
“Naquele aposento onde tudo era bem ordenado, da cristaleira à colcha da cama, da mesa de trabalho às letras no caderno, eu era a única a transgredir essa ordem. Meu vestido e a roupa de baixo estavam espalhados por todo lado, e eu era um corpo insólito estirado sobre o sofá.” [p. 65]
“Os dedos procuraram a entrada das trevas. De alguma forma as coisas pareciam caminhar para seu ápice. A impressão era de que tudo dentro dos meus pelos pubianos seria estraçalhado. Tentei fechar as dobras de algum jeito com medo de que acabassem explodindo antes de chegar ao prazer. Porém, a corda que atava minhas pernas não se moveu nem um milímetro.
Os dedos penetraram nas trevas. O homem adentrou sem titubear um local onde nem eu própria jamais tocara. A ponta dos dedos girava dentro da fresta com suas laterais de carne tépida.” [p. 69]
“Nessa noite aconteceu um pequeno incidente na recepção. Um hóspede voltou embriagado e tocou nos meus seios.
— Opa, foi mal. Minha mão escorregou sem querer.
O hóspede soltou uma risada repugnante.
Na hora eu não entendi o que ele fez comigo. Quando ele estava colocando a chave sobre o balcão, sua mão veio na minha direção e apalpou um dos meus seios. Precisei de alguns segundos para entender o sentido do seu gesto. Eu continuava com uma sensação desagradável no peito.
Larguei a chave e gritei. Passei várias vezes a mão no peito como se os dedos do hóspede ainda estivessem grudados nele. Ao me ver fazer isso, o homem riu ainda mais.
— Garota, não precisa ter tanta aversão. Não tive malícia. Foi só um deslize meu! Um deslize, ouviu?
Cambaleante, o homem apoiou os cotovelos no balcão e me encarou com olhos vermelhos. O bafo alcoólico se avizinhou. Voltei a gritar a plenos pulmões.” [pp. 89-90]