Que tal viver para sempre? Para muitos, uma ideia absurda, para outros, um atraente desafio. Em entrevista à DW, o historiador Yuval Noah Harari descreve a humanidade caminhando nesse sentido.
Em seu livro recém-publicado Homo Deus: A brief History of tomorrow (“Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, em tradução literal), Yuval Noah Harari delineia um futuro próximo em que os limites da vida humana serão progressivamente ampliados, tanto graças aos avanços na medicina como a técnicas informáticas, como a preservação do conteúdo cerebral num banco de dados.
E aí a tecnologia encontra a religião: “Pegue as fantasias que há milhares de anos pertenciam ao reino da religião – superar a morte ou fundir-se com o universo – e de repente se começa a falar sobre elas de uma perspectiva mais técnica, como algo que se pode alcançar”, exemplifica o autor.
Desse modo, graças aos cientistas e aos “gurus de Silicon Valley”, a morte passaria a ser um mero “problema técnico”. O resultado pode ser um mundo em que “a saúde será o mercado mais importante de todos” – mas também em que os humanos estão ameaçados de se tornarem meras ferramentas.
E não estamos falando de uma situação em que se toma uma pílula para chegar a 1 milhão de anos, mas sim de avanços cumulativos, graduais na medicinaYuval Noah Harari
Harari é docente do Departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém. Seu livro anterior, Sapiens: Uma breve história da humanidade, de 2014, que aborda grandes questões da história e do mundo moderno, transformou-se num best-seller internacional, sendo traduzido em 40 línguas. Em entrevista à DW, ele fala sobre o novo lançamento.
DW: Fiquei fascinado com a ideia de superar a morte no seu livro Homo Deus: A brief History of tomorrow. A mim, ela não atrai em especial, mas como você se sente em relação à imortalidade? Consegue se ver vivendo até os 150, ou até 500 anos, como você descreve que será possível num futuro próximo?
Yuval Noah Harari: Acho que se você perguntar a qualquer um se quer viver até 1 milhão de anos de idade, ele achará a pergunta absurda, pois não conseguimos imaginar o que isso significa. Mas quase todo o mundo diria “sim” ao ser indagado se quer viver mais dez anos com boa saúde.
E não estamos falando de uma situação em que se toma uma pílula para chegar a 1 milhão de anos, mas sim de avanços cumulativos, graduais na medicina, em que, esperemos, a cada dez anos se ganha mais dez anos de vida saudável. E acho que isso é algo que a maioria das pessoas saudaria.
Quanto à praticabilidade, dentro de um século ou dois é possível que isso tenha se tornado ciência, e não ficção científica. Minha impressão é que não acontecerá para a minha geração, nos próximos 30, 40, 50 anos, mas no longo prazo é certamente praticável.
DW: Como você disse, realmente não se consegue imaginar como será o futuro. E a imortalidade pode mesmo parecer praticável, considerando algumas tendências mencionadas em seu livro – como a eugenia; a técnica CRISPR-cas9, que está tornando a edição genética humana mais socialmente aceitável; ou a bioeletrônica e a possibilidade de ter o cérebro armazenado num banco de dados. Porém, à medida mesmo em que ficamos mais obcecados por essa ideia, a imortalidade passará a não significar mais o que significa hoje para nós, e aí vamos ficar desapontados, não é? E vamos nos dar conta de que não somos tão importantes quanto pensávamos.
Yuval Noah Harari: Sim, esse é um dos principais perigos. A mesma tecnologia que nos permitirá suplantar a velhice e a morte também tornará irrelevante e redundante a maioria dos humanos. Para vencer o envelhecimento, é preciso decifrar os segredos da bioquímica humana, saber como o corpo e o cérebro funcionam, a fim de podermos reparar danos e combater a deterioração do sistema.
Mas, uma vez adquirido esse conhecimento, basicamente se terá decifrado, como um hacker, o código da humanidade, e compreendido como o mecanismo funciona. A essa altura, também se chegará a uma situação em que sistemas externos, algoritmos externos, talvez a inteligência artificial, vão nos compreender melhor do que nós mesmos, e nos superar em praticamente qualquer tarefa e habilidade. Nesse momento, sim, poderíamos vencer a velhice e a morte, mas também nos tornaríamos redundantes e irrelevantes.
DW: Seu livro também fala muito de dataísmo – a obsessão pelos dados -, que vê os seres humanos como “meras ferramentas”. E – enquanto aparentemente queremos um tipo de imortalidade, real ou virtual, por termos medo, por querermos controlar a vida, ou, como diz você, para mostrar que somos superiores aos outros animais – me ocorre: será que tudo isso não é sem sentido? Nós não viveríamos vidas mais felizes se nos arranjássemos com os fatos, aceitando que vamos todos morrer?
Yuval Noah Harari: Bem, essa era a sabedoria difundida ao longo da história. E a maioria a aceitava por não ter opção. Mas as pessoas ainda têm fantasias sobre a imortalidade: elas simplesmente a adiam para após a morte. Ao longo da história, muitos pensaram que viveriam para sempre, mas não neste corpo ou neste plano de existência. Em vez de morrer, eles reencarnariam ou iriam para o Céu, ou alguma outra história do tipo, que lhes prometesse a imortalidade.
O que acontece agora, é que o saber científico diz que isso era pura fantasia, mitologia, e que não há qualquer indício de haver uma existência além da morte. Mas, ao mesmo tempo, de repente a ideia de prolongar a vida indefinidamente está se tornando mais alcançável, mais prática. Não nos próximos 20, 30, 40 anos, mas certamente dentro de um século ou dois.
DW: E quanto aos incentivos comerciais para o nosso desejo de imortalidade? Porque, para manter ativa a economia dos dados, é preciso ter gente constantemente alimentando-a com dados.
Yuval Noah Harari: No nível comercial, a saúde é o mercado definitivo. Outros mercados são finitos, exauríveis: só se pode ter certa quantidade de carros, sapatos ou comida. Mas saúde nunca é demais. Observando o crescimento projetado da economia humana no século 21, minha expectativa é que a saúde será o mercado mais importante de todos. Sobretudo ao passarmos de uma concepção focada na cura dos doentes para a de “upgrade dos saudáveis”.
Não há limite para o fornecimento de saúde: não se tenta apenas alcançar um padrão universal, sempre se procura superá-lo. Portanto não se trata apenas do medo de indivíduos – que não queiram envelhecer, adoecer ou morrer -, mas há também forças institucionais muito poderosas impelindo a indústria e a ciência na mesma direção.
DW: Quanto a essa ideia de transcender: é por isso que você se refere aos “profetas do dataísmo”, ao trabalho de missionário de gente como Ray Kurzweil e a “internet de todas as coisas” dele, a qual, como você coloca, verá os seres humanos se fundirem com a rede, ao ponto de atingirmos um nível espiritual, de divindade?
Yuval Noah Harari: Sim. Você pega as fantasias que há milhares de anos pertenciam ao reino da religião – superar a morte ou se fundir com o universo – e de repente começa a falar sobre elas de uma perspectiva mais técnica, como algo que se pode alcançar. Não depois de morrer, com a ajuda de seres sobrenaturais, mas nesta vida, com o auxílio da tecnologia.
Portanto, todas as promessas da religião tradicional, seja felicidade, justiça ou vida eterna, são as mesmas promessas feitas agora pela religião do Silicon Valley e seus gurus. Mas eles prometem alcançar isso através da tecnologia, e não de seres sobrenaturais.
uol