A Isla de Flores (Ilha de Flores) está situada no Rio da Prata, no Uruguai, há 20 quilômetros da costa de Montevidéu. Entre o final do século 19 e o início do século 20, a ilha abrigou uma colônia de hansenianos e serviu também de prisão para presos políticos. Em ruínas há cerca de 50 anos, a ilha, agora transformada em um Parque Nacional, é habitada apenas pelos faroleiros da Armada uruguaia.
Muitos uruguaios sabem da existência da ilha, que inclusive pode ser vista de alguns pontos de Montevidéu, em dias ensolarados. Mas a maioria deles nunca esteve lá nem conhece bem a sua história.
O arquiteto uruguaio Daniel Thul, em 2005, uniu-se a um amigo, o jornalista Javier Benitéz, para desenvolver o projeto de reconstruir virtualmente as antigas edificações da ilha. O que restou são apenas ruínas, alguns muros e a chaminé do crematório.
Thul contou à Agência Brasil que, após a fase de investigação e levantamento de materiais históricos, como fotos e arquivos, realizada por Benitéz, o projeto ficou alguns anos parado. “Como foi algo que fizemos por conta própria, sem financiamento, eu ia fazendo quando sobrava tempo. Houve anos que não avançamos nada”, contou.
Em 2017, Thul foi à Espanha fazer um curso de “patrimônio virtual”, justamente o que faltava para que ele pudesse dar continuidade ao trabalho. “Com o avanço da tecnologia, que foi enorme, agora tenho ferramentas que me permitiram fazer as animações em um tempo muito mais curto. Nestes últimos anos, agarrei toda a informação que já tinha processada e intensifiquei o trabalho”.
O vídeo a seguir mostra as edificações da ilha exatamente como eram no ano de 1911. À época, funcionava no local o Hospital de Imigrantes, um nome eufemístico para a colônia de hansenianos.
História
“Para o Uruguai, o lugar é muito importante. Aqui dizemos que descendemos dos barcos. A maioria da população é descendente de europeus. Num primeiro momento, o mais importante para a ilha foi a construção do farol, porque o Rio da Prata é de difícil navegação. É bastante perigoso, tem um banco de areia que se chama Banco Inglês e o chamam de ‘o inferno dos marinheiros’. Muitos barcos naufragaram nessa zona. Então construíram o farol (na Isla de Flores) pela segurança da navegação, em 1828”, afirma Thul.
Durante um século, entre 1869 e 1970, mais de 500 mil pessoas passaram pela ilha, entre militares, policiais, funcionários públicos, pescadores e cientistas. Mas a maioria dos que passaram por ela eram prisioneiros e imigrantes forçados a inspeções sanitárias antes de chegar a Montevidéu. Todos os barcos tinham de parar na ilha, antes que pudessem seguir viagem.
“Com a chegada da imigração no Uruguai, entre a segunda metade do século 19 e o início do século 20, para evitar a propagação das enfermidades que vinham de fora, se construiu o lazareto (hospital isolado aonde se tratavam as doenças infecciosas). Todos os barcos que vinham com perigo de ter passageiros portando alguma enfermidade complexa, como febre amarela ou cólera, ou que haviam passado por algum porto que estava infectado, como por exemplo o porto do Rio de Janeiro, tinham que parar na ilha. Então era feita a inspeção sanitária. Algum médico da ilha ia até o barco e via quantas pessoas estavam doentes, quantas tinham sintomas, etc. Não precisavam desembarcar todos, mas os que estavam doentes, sim”, conta Thul.
Hospital de Imigrantes
A colônia para hansenianos (à época a hanseníase era chamada “lepra”) recebeu o nome de Hospital de Imigrantes e as instalações eram separadas em diferentes partes da ilha. A ilha é composta por três ilhotas.
Daniel Thul conta que a primeira parte da ilha, onde estava o atracadouro dos barcos, era destinada a abrigar as pessoas que não tinham sintomas, mas que poderiam ter alguma doença incubada. Lá também estava o hotel para oficiais e visitantes ilustres e o farol. É a chamada “Ilha Grande”.
Nessa parte da ilha havia também um prédio de desinfecção para lavar roupas e objetos contaminados, cujas caldeiras enferrujadas ainda representam monumentos peculiares na região rochosa e acidentada.
Na segunda parte da ilha (Isla Segunda) estava o cemitério e o hospital que abrigava pessoas que tinham alguma doença, mas sem muita gravidade. Era o “hospital de enfermidades infectocontagiosas”. Quanto mais afastado estivesse da Ilha Grande, mais grave era a situação do doente.
E na terceira parte da ilha (Isla Tercera) ficavam os chamados “exóticos pestilenciais”, que eram as pessoas que estavam à beira da morte. Havia uma capela e um crematório, construído em 1909. Antes disso, os corpos não eram cremados, e sim enterrados no cemitério.
Confira a entrevista que o arquiteto Daniel Thul concedeu à Agência Brasil:
Agência Brasil: Como foi o seu processo de pesquisa para este projeto?
Daniel Thul: Para reconstruir em 3D (três dimensões) algo que não existe, você depende da informação que tenha disponível. No caso da Isla de Flores o que se fez foi utilizar plantas originais dos diferentes edifícios, não de todos, mas da maioria. Quando fomos à ilha, tiramos muitas fotos, e também contamos com fotos históricas de todos os edifícios. Há documentos, arquivos, ilustrações… tem muitas notas da imprensa do início do século com fotos ou desenhos.
Agência Brasil: Qual período é retratado no vídeo que você criou?
Thul: A reconstrução é de 1911 porque foi quando terminaram de construir todas as construções. Começaram com o lazareto, depois foram agregando outros edifícios. E com o avanço das medidas sanitárias, iam requerendo outras coisas, como o desinfectório, onde colocavam as malas que passavam por estufas de vapor.
Em um determinado momento, coincidiram as duas coisas: era lazareto e prisão. Em 1904, houve uma revolução no Uruguai e levaram alguns presos para lá. Depois, em 1933, também. Eram, geralmente, presos políticos. Ainda hoje se vê uns portões, que são como umas celas, creio que foi esse setor que usaram como prisão. Em 1934, deixou de funcionar como lazareto. Sei que no ano de 1968 ainda funcionou como prisão, e acho que essa foi a última época em que foi habitada.
Agência Brasil: Qual foi o maior desafio para a reconstrução 3D?
Thul: O projeto é complexo pelo tamanho e pela dificuldade de acesso à ilha. Fui apenas uma vez ao local. O mais complexo (de modelar em 3D) é a ilha em si. Porque, ao ser arquiteto, (modelar) coisas que não são figuras geométricas é mais difícil. Eu tinha que ver muitas fotos, voltar a vê-las, isso me levou muito tempo.
Agência Brasil: O trabalho da Ilha terminou ou você ainda tem planos?
Thul: A ideia agora é fazer, pelo menos, mais dois vídeos de 5 minutos, onde vamos percorrer edifício por edifício, explicando o que era cada um. E fazer ainda uma animação para que se possa ver em realidade virtual, com os óculos Google cardboard (óculos de papelão para assistir em realidade virtual), para que se possa ver no celular.