“Há famílias que sem a judicialização não vão conseguir tratamento para doenças raras. Mas precisamos diminuir essas ações em trâmite”, afirma a advogada Rosângela Moro, especializada em causas que envolvem doenças raras.
Ela destaca que é preciso buscar alternativas, principalmente as que envolvem custo reduzido, como capacitação para melhor diagnóstico, formação de banco de dados sobre os pacientes pelo Ministério da Saúde e aumento da concorrência entre as terapias.
Rosângela foi palestrante no evento Cenário das Doenças Raras no Brasil, promovido pela ONG Casa Hunter, realizado nesta terça-feira (19), em São Paulo. A advogada ressaltou ferramentas que podem contribuir para a redução da judicialização, como o uso do e-NatJus, uma plataforma digital que fornece fundamentos científicos sobre doenças para magistrados concederem medicamento ou tratamento médico.
“O número de juízes que tem usado essa plataforma ainda é bastante reduzido”, afirmou durante sua apresentação.
Estima-se que haja 13 milhões de pessoas com doenças raras no Brasil. Cerca de 75% das patologias afetam crianças e 80% têm origem genética, de acordo com o Ministério da Saúde. Para uma doença ser considerada rara, sua prevalência deve ser menor do que 65 casos em 100 mil habitantes.
Rosângela atua na área desde 2012. Ela abraçou a causa depois de ter defendido um caso de uma menina de 12 anos com uma síndrome rara que necessitava de medicamento. “Era um remédio que já fazia parte da lista do SUS, mas com protocolo para outra doença”, afirma. “Na época, minha filha tinha exatamente 12 anos e eu me sensibilizei com a situação”, completa.
‘A preocupação das famílias é se vão conseguir tratamento’
Ao longo de sua carreira, a advogada aponta que nunca ouviu queixa das famílias que lidam com as dificuldades impostas pelas doenças raras. “A única queixa que eu escuto é a preocupação se vai conseguir ter tratamento”, diz. “Nunca ouvi uma queixa no sentido de ‘minha vida é um fardo'”, afirma. “Serve de inspiração”.
Existem cerca de 8 mil doenças raras catalogadas. O SUS dispõe de 40 protocolos para tratamento; 15 estão sendo revisados e 6 estão em construção, segundo a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS).
De acordo com dados da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), 95% dos tratamentos com medicamentos das doenças raras são paliativos, 3% envolvem tratamentos cirúrgicos ou com medicamentos que visam sintomas e apenas 2% dos pacientes com doenças raras efetivamente acessam medicamentos específicos que são capazes de interferir na progressão da doença.
Esse número está relacionado a procedimentos legais e administrativos que envolvem a incorporação de medicamentos pelo SUS, assim como o alto custo dos medicamentos, pois são importados, segundo dados apresentados pela Casa Hunter. A luta pelo acesso ao tratamento leva muitas famílias a apelar pela judicialização.
Um relatório divulgado nesta segunda-feira (18) sobre a judicialização na saúde apontou um crescimento de cerca de 130% nas demandas de primeira instância entre 2008 e 2017. A pesquisa foi encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Poder Judiciário.
Leia a entrevista que a advogada Rosângela Moro concedeu ao R7 a seguir.
A judicialização é um dos principais desafios para o tratamento das doenças raras?
Não é o único problema. Verba, gestão. A judicialização altera a ordem de orçamento. Há um orçamento programado e, com judicialização, vai haver alteração desse orçamento, pois o juiz vai mandar comprar o medicamento. Então, a judicialização hoje não é o ideal. É uma soma de fatores que precisam ser revistos para tentar amenizar os impactos da judicialização.
Qual seria o principal fator para reduzir a judicialização? Tem que começar a trabalhar dentro daquilo que não envolve muito custo ou envolve custo reduzido, por exemplo, formar um banco de dados de quantos são os portadores concentrado no Ministério da Saúde. A formação de um banco de dados é fundamental. Capacitar os profissionais na assistência à saúde básica, que é a porta de entrada no SUS, para que as pessoas possam ser diagnosticas mais precocemente. Trazer novas terapias para concorrer com as que já existem. Favorecer e equipar, se assim for necessário, a Anvisa. Um quadro técnico maior, dentro do possível, para acelerar a análise. Tem medicamentos que são órfãos, drogas únicas, mas há algumas doenças que têm medicamentos outros que ainda não são comercializados no país e que poderiam, sim, com a concorrência, reduzir o custo, porque os pacientes precisam ser atendidos. E para os pacientes que têm recursos e podem comprar também é interessante ter mais de uma alternativa.
Ações coletivas são mais eficazes do que ações individuais?
Ação coletiva não quer dizer um grupo de 15 pessoas em nome próprio pedindo. A legitimidade de pleitear esse direito é atribuída a uma outra pessoa. No direito, cada um pode pedir aquilo para si e, uma exceção à essa regra, é a da ação coletiva. Então, há uma associação que pode fazer esse pedido coletivamente no que já intui um grupo grande de portadores de determinada doença. Agora, as associações têm receios dessas demandas porque não podemos desconhecer que houve problema da má judicialização, é essa que a gente tem que combater sempre. E nada impede que se procure o Ministério Público que pode adotar essas medidas. Há muitas ações coletivas em trâmite, mas as demandas precisam de provocação. As partes precisam levar a demanda para o Ministério Público.
No que consiste a má judicialização?
Houve casos, por exemplo, em que o juiz acabou deferindo um medicamento quando não era realmente necessário. Ou quando não há nenhum pedido do laboratório de registro na Anvisa, quer dizer, ele não passa pela regulação de preço do CMED [Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos] e o juiz ali é convencido com uma prova pericial e fica meio refém do laboratório, porque não passou pela Anvisa para controle de preço.
A senhora mencionou a disparidade entre a diferença do número de doenças e de protocolos oferecidos pelo SUS na palestra sobre doenças raras. O número de doenças raras catalogadas está em torno de 8 mil e são 40 protocolos que já existem no SUS e 15 revisitados. Há uma diferença gritante, mas dessas 8 mil não são todas que teriam o protocolo. O ideal seria o número exato de doenças com o de protocolos. Mas sempre haverá uma disparidade, porque a medicina é muito rápida, o avanço tecnológico é muito rápido e novas doenças podem vir a ser descobertas. Quanto menor for essa diferença, me parece que as doenças estarão mais protegidas.
A senhora trabalha com doenças raras desde 2012. O que motivou a escolha por essa área?
O que me motivou é que fui procurada por uma pessoa, a filha dela tinha uma síndrome rara. Ela tinha recursos e pôde ir para fora do país buscar o melhor tratamento, contratou advogado, ela conseguiu medicamento para a filha dela. Foi um dos primeiros casos. Até os 12 anos de idade era uma criança totalmente normal, frequentava a escola e começou a ter problemas no aprendizado, neurológicos. Na investigação para buscar o diagnóstico, confirmou-se se tratar de uma síndrome rara. Na época, minha filha tinha exatamente 12 anos. Foi ali que me conscientizei da situação. Como assim? Até ontem sua filha estava estudando na escola e hoje depende desse medicamento? Eu me sensibilizei com isso. Ela precisava, na época, que alguém fizesse essa parte de pedir em juízo o medicamento. Era um remédio que já fazia parte da lista do SUS, mas com protocolo para outra doença. E você começa a verificar também qual o critério para dar para uma doença e não para outra. O critério de igualdade não estava sendo totalmente atendido.
Qual a principal queixa das famílias com casos de doenças raras que procuram um advogado? A única queixa que eu escuto é a preocupação se vai conseguir ter tratamento e, caso consiga, se não vai ser interrompido, porque há casos em que consegue, mas é interrompido porque a máquina é muito burocrática. Mas preciso registrar que nunca ouvi uma queixa no sentido de ‘minha vida é um fardo’ ou ‘que difícil’, o que serve de fonte de inspiração para eu trabalhar, que a gente não tem dificuldade na vida. Quando você está com saúde, está tudo certo. A saúde é uma loteria. As pessoas, quando elas se formam nas associações, elas ultrapassam oceanos e fazem contatos com outras e formam uma grande rede de intercâmbio de informações. Eu participei de algumas reuniões fora do Brasil e vi pessoas que já tinham perdido seus familiares em virtude da doença e continuavam a fazer parte das associações em caráter voluntário. Então, são dois lados para se ver: tem o lado humano, que eu adoro o ambiente dessas instituições, e tem essas dificuldades, que se a gente puder de alguma maneira diminuir o sofrimento dessas pessoas é o que tem que fazer.
Qual a chance de uma pessoa que entra na Justiça obter sucesso na aquisição de remédios para o tratamento de doenças raras?
Depende do caso. Se a droga já está no sistema, o sucesso é de 100% porque você mostra documentalmente com perícia e dados médicos. A perícia não é a perícia do médico da pessoa. O juiz nomeia um perito imparcial da confiança do juízo para apresentar um laudo imparcial. E isso faz a diferença para o profissional que vai judicializar diante dessas circunstâncias e avolumar o orçamento público, tem que ter muita consciência e fazer um trabalho muito sério. Nos processos em que já judicializei eu não abro mão de perícia. Porque é uma segurança para mim, para eu ter certeza de que aquela pessoa tem aquela doença, pode ser outra que aquele remédio naquele caso vai ter a eficiência que se espera, além de ser uma segurança para a parte, para a associação que indicou a parte e para o juiz. É um olhar técnico de que a doença existe, que o medicamento é aquele e que não pode ser substituído por outro. E se o SUS oferece outra alternativa é justo que se use a outra alternativa fornecida. Bom não é, mas há famílias que sem a judicialização não vão conseguir tratamento. Todos nós concordamos que precisamos diminuir essas ações em trâmite.
R7