Um paciente entra na Justiça — por meio de um advogado privado — para obrigar o governo a lhe fornecer um remédio. A demanda é atendida, levando a gastos muitas vezes não previstos pelos governos municipais, estaduais e federais.
Trata-se de um enredo que se repete com cada vez mais frequência no Brasil, em um fenômeno conhecido como “judicialização da saúde”. O descompasso entre os pedidos judiciais de pacientes, que querem fazer valer seu direito constitucional à saúde, e as limitações orçamentárias do serviço público é tanto que o tema entrou na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal).
Há exatamente um ano, estão na fila de julgamento dois processos sobre o tema. O primeiro questiona a obrigação do Estado de financiar medicamentos de alto custo que não tenham sido registrados pela Anvisa, a agência de vigilância sanitária. O segundo pleiteia o custeio público de remédios que não tenham sido incluídos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Ambos serão julgados juntos e foram classificados pela corte como de “repercussão geral”. Isso quer dizer que a decisão dos ministros deverá ser seguida por juízes de instâncias inferiores em casos semelhantes.
A expectativa dos governos é que a decisão do Supremo seja capaz de interromper um ciclo de quebra dos planejamentos de saúde em todo o país. Já pacientes e familiares que buscam remédios na Justiça vivem a aflição de poder ter seus pleitos barrados.
Nos últimos 12 meses em que o processo ficou parado nos escaninhos do STF, alguns estudos têm apontado para a complexidade do assunto.
Uma das questões é a possibilidade de que a judicialização da saúde reforce a desigualdade entre ricos e pobres no país no acesso à saúde. Por outro lado, o avanço na inclusão de medicamentos distribuídos pelo SUS parece, em alguns casos, acontecer por força das demandas judiciais. Há ainda suspeitas de que o fenômeno sirva como ferramenta de lobby para laboratórios e possibilidade de enriquecimento para advogados.
Judicialização reproduz desigualdade?
Um grupo de especialistas tem argumentado que, além de dificultar o equilíbrio entre o direito dos indivíduos à saúde e as limitações dos recursos públicos, a judicialização tem beneficiado relativamente mais pessoas com recursos, espelhando a desigualdades entre ricos e pobres no país.
Essa é a conclusão de dois estudos recentes sobre o tema: um publicado como tese de doutorado na USP pela pesquisadora Ana Luiza Chieffi e outro, como auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União).
Segundo Chieffi, a questão da desigualdade é evidente em São Paulo. Ela constatou que, entre 2010 e 2014, dos 56 mil processos em que o Estado foi obrigado a fornecer algum tipo de produto relacionado à saúde, as ações foram protagonizadas por advogados privados em 64% dos casos, seguidos de longe por defensores públicos (13,8%) e promotores (9%).
Além disso, em quase metade das ações (47,8%), as receitas que levaram a processos também foram prescritas por médicos de clínicas privadas. Assim, na prática, quem precisa mais e tem menos recursos para se socorrer tem menos acesso a esse tipo de demanda judicial.
“A ação judicial está concentrada nas camadas menos vulneráveis, por isso, estes e outros dados mostram que a judicialização acentua a desigualdade no acesso à saúde”, afirma Chieffi, que verificou também aumento de 63% no volume de demandas judiciais para fornecimento de produtos relacionados à saúde no Estado de 2010 a 2014.
O TCU registrou situação parecida. De acordo com a auditoria, os gastos do Ministério da Saúde para cumprir decisões judiciais passaram de R$ 70 milhões em 2008 para mais de R$ 1 bilhão em 2015.
Dos doze tribunais que forneceram dados referentes aos representantes das ações, quatro apresentaram advogados privados como protagonistas em mais de 50% das ações; outros quatro tiveram defensores públicos como majoritários. Somente o Tribunal de Justiça do Paraná apontou para a atuação do Ministério Público como majoritária.
O TCU afirma que a atuação do Ministério Público, em geral, é “bastante reduzida”, e um baixo índice de ações coletivas por medicamentos reforça o caráter individual da judicialização por saúde no Brasil.
Por email, o ministro do TCU Bruno Dantas, relator da auditoria, afirmou que esta inequidade se relaciona a outra: a desigualdade social no país.
“Há uma relativa facilidade de acesso à Justiça e uma alta probabilidade de sucesso nas ações judiciais dessa natureza, superior a 80% no Brasil. À primeira vista, esse dado seria positivo, se não fosse um detalhe perverso: em razão dos custos processuais, as ações tendem a afastar os mais pobres”, disse.
“Isso quer dizer que a judicialização no Brasil, no lugar de beneficiar grupos mais vulneráveis, como quis a Constituição e como deseja qualquer sistema amparado na solidariedade social, pode estar intensificando as iniquidades já existentes na oferta de serviços à saúde”, acrescentou Dantas.
“O dinheiro inicialmente alocado para a execução da política pública de saúde, dirigido a todos, é redirecionado para atender a demanda individual de quem tem acesso à Justiça”, completa.
Antes de tudo, um direito
Por outro lado, pacientes com doenças raras e seus parentes também têm acompanhado com muita expectativa as pautas da corte.
Segundo Sérgio Sampaio, presidente da ABRAM (Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose), a Justiça é a única alternativa para muitos pacientes diante da demora dos governos em regularizar e incluir medicamentos na lista do SUS, e às vezes até mesmo em fornecer dispositivos assistenciais que claramente são obrigação do poder público.
É o caso do filho de Sampaio, hoje com 30 anos e portador da mucoviscidose (doença rara conhecida também como fibrose cística, que causa o acúmulo de secreções no pulmão e em outras partes do corpo, levando a graves problemas respiratórios e digestivos). Ele tem conseguido antibióticos importados ainda sem registro na Anvisa graças a um Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público e o governo do Paraná.
A doença é desafiadora, pois torna os pacientes vulneráveis a infecções, eventualmente levando a uma ampla resistência aos antibióticos existentes.
“Quem paga o preço da criminalização da judicialização são as doenças raras. Isso pela gravidade destas doenças, pela dificuldade de diagnóstico e pelo preço das drogas, que por vezes são muito restritas. É muito fácil o Estado falar dos milhões que gasta, sem garantir tratamentos”, aponta o presidente da ABRAM.
Para ele, a “criminalização da judicialização”, ou seja, o argumento de que tais processos são danosos aos cofres públicos, é um discurso que ataca a “população que exerce o direito sagrado à vida”. “Você não vai ficar de braços cruzados vendo um filho, uma mãe ou um pai sucumbindo”, diz Sampaio.
“A atual gestão já incorporou importantes tecnologias ao SUS, como o Dolutegravir (utilizado no tratamento de HIV) e o 4 em 1 (Veruprevir, Ritonavir, Ombitasvir e Dasabuvir), utilizado no tratamento de hepatite C”, afirmou a pasta.
“Além disso, a nova Relação Nacional de Medicamentos Essenciais — Rename 2017, que define os medicamentos que devem atender às necessidades de saúde prioritárias da população no SUS, conta com 869 itens, contra 842 da edição de 2014.”
Descompasso entre os governos e a Justiça
Diferente do caso das doenças raras citado por Sampaio, boa parte das demandas judiciais relacionadas à saúde recorrem a remédios para doenças crônicas que têm similares no sistema público de saúde ou que podem não ter tido a eficácia reconhecida por autoridades brasileiras.
É o que tem acontecido em São Paulo. Segundo o estudo de Chieffi, entre os medicamentos mais demandados entre 2010 e 2014, os dois no topo da lista são as insulinas glargina e asparte (somando 5,3 mil processos). Ambas já haviam tido a inclusão no SUS negada pelo Ministério da Saúde — que concluiu não haver comprovação de que esses tratamentos seriam superiores aos já disponibilizados ao público. Posteriormente, a insulina asparte foi incorporada.
“Essas insulinas que são demandadas são tão boas quanto as disponibilizadas pelo SUS. Apesar de darem mais conforto para o paciente, elas não são custo-efetivas. A Justiça não está levando em conta as evidências científicas e um sentido de política pública”, aponta Chieffi, acrescentando que a demanda judicial por insulina é muito comum em diversos Estados, apesar da assistência dada pelos governos a diabetes ser razoavelmente satisfatória.
“Esse tipo de demanda desorganiza a política pública. Mas não sou contra a judicialização: ela nem sempre é ruim”, ressalta a pesquisadora, para quem, em todo este cenário, “os pacientes estão no seu direito: precisando de medicamentos”.
Segundo a pesquisa de Chieffi, dos 20 medicamentos mais demandados no Estado de São Paulo de 2010 a 2014, somente quatro não tinham algum tratamento similar no SUS.
O TCU também apontou para o descompasso entre as avaliações da Justiça e dos governos. Segundo o relatório do tribunal, sensibilizados pela história de doença da pessoa que pede remédios na Justiça, os magistrados frequentemente desconsideram o custo-efetividade de sua decisão — ou seja, a alocação de recursos que, idealmente, possam contribuir muito para a condição de saúde de muitas pessoas.
De acordo com o documento, um “aspecto preocupante” é a interpretação, pelo Poder Judiciário, da saúde “como um direito absoluto”.
Mas, segundo Sampaio, a judicialização pode ampliar o direito à saúde na medida em que o Executivo observa as tendências do que é demandado nos tribunais — chegando a um modelo parecido com os tratamentos para a Aids hoje, com compras de remédios e tratamentos centralizados e organizados, polos de tratamento que são referência e cadastro de pacientes.
Curiosamente, a revisão bibliográfica feita pela auditoria do TCU mostra que a reinvindicação por tratamentos para a Aids foi talvez um dos primeiros marcos da judicialização da saúde no Brasil, ainda na década de 1990 — hoje, demandas na Justiça por tratamentos para a doença estão longe das carências mais solicitadas.
“A judicialização poderia estar norteando o Executivo”, sugere Sampaio.
Apesar de defender o acesso à Justiça como um direito, o presidente da ABRAM reconhece que a judicialização tem um lado prejudicial também para os pacientes: “Mesmo com uma decisão favorável de um juiz, ela pode ser reformada a qualquer momento em instâncias seguintes, ainda que tenha cumprido todos os requisitos, como uma perícia comprovando a necessidade do tratamento”.
Citada por Sampaio, a possibilidade de uma decisão a favor do paciente ser derrubada em instâncias superiores tem como exemplo extremo os dois recursos extraordinários que esperam julgamento no Supremo. Em um deles, o governo do Rio Grande do Norte questiona a obrigação de financiar medicamento não listado pelo SUS a uma paciente; em outro, o Estado de Minas Gerais contesta a obrigação de fornecer um remédio não registrado pela Anvisa.
Em 2016, o início do julgamento mobilizou diversos grupos de pacientes com doenças raras e a opinião pública, mas a pauta em plenário foi interrompida no final de setembro por um pedido de vista pelo ministro Teori Zavascki — morto três meses depois.
Sampaio teme pela decisão da corte — segundo ele, pode ser decretada uma “eugenia” caso o STF negue o direito a remédios não listados pelo SUS e Anvisa. “Temo pela decisão do STF. Pode ser decretada a morte de muitas pessoas”, diz.
Por outro lado, procuradores de diversos Estados que são parte nos processos defenderam, nas sessões de julgamento ocorridas em 2016, que os recursos que podem ser desviados por vias judicias para beneficiar uma pessoa, poderiam fazer muita falta na vida de outras.
“(…) Pensem Vossas Excelências: qual o interesse maior do Estado? Destinar milhares de reais para atender a um único cidadão, prestando-lhe medicamento de alto custo, ou destinar essa mesma quantia a políticas básicas de saúde, atendendo a centenas de cidadãos?”, diz um trecho do recurso aberto pela Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Norte.
“É preciso fazer uma reflexão séria e isenta a respeito do assunto, visto que a emoção de ver um pedido muitas vezes legítimo tem levado ao esvaziamento dos cofres públicos destinados às políticas e ações sociais de saúde”, conclui.
R7