“Tem um mês e meio que não comemos carne, só arroz, feijão e ovo. Nem dinheiro pro pão eu tô tendo. Peguei R$ 50 com o vizinho para comprar leite, mas é pra uma semana sim e a outra não”, revela a diarista Sandra do Prado, de 49 anos, moradora de Heliópolis, a maior favela de São Paulo.
Ela perdeu o emprego, tem depressão e faz faxina e passa roupa a cada 15 dias. No quarto, cozinha e banheiro, ela mora com a filha de 15 anos e o marido. O salário que ele recebe como montador de academia é o suficiente para pagar o aluguel e algumas contas. Não sobra nada para a alimentação.
“Não durmo, acordo tremendo. Muitas contas na minha cabeça e meu marido fica nervoso, acho que ele vai nos deixar. Auxílio emergencial eu tava recebendo, mas agora tá numa situação que só por Deus. Quero comprar coisas pra minha filha, mas não tem como”, afirma Sandra.
Com o agravamento da pandemia, ela recorreu a uma conselheira tutelar e pediu doação: “Liguei desesperada pra ela que me ajudou a trazer minha filha da Bahia porque não tinha nada em casa. Tá difícil porque nem doação tem”.
Segundo Antônia Cleide Alves, que é presidente da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), muitas famílias da comunidade estão passando fome.
“Já se passou um ano do início da pandemia, não teve a absorção dos desempregados e mais famílias foram para o mercado informal. Antes era 30% da população de Heliópolis, hoje já chega a quase metade dos moradores”, destaca Cleide Alves.
Uma pesquisa feita pela UNAS indicou que 89% da população tem medo de não ter o que comer no dia seguinte e 24% dos entrevistados já ficaram sem alimentação. Eles então escolhem uma das refeições para eliminar, a maioria opta por excluir o café da manhã (31%) ou o jantar (13%).
“Tamos na labuta. A gente não consegue ver pessoas passando fome e não fazer nada. Eu passei necessidade quando saí do Nordeste na década de 1970 e sei o que é fome. Essa não é só a minha história e a gente fica muito preocupada. É muito triste e não podemos permitir as panelas vazias, por isso a campanha pelas doações e qualquer quantia importa”, ressalta a presidente da UNAS.
A pandemia do novo coronavírus completou um ano com o aumento do número de mortes, casos e internações por covid-19. Em Heliópolis, que tem mais de 220 mil habitantes, a situação só se agravou.
Os moradores precisam ainda mais de doações, mas elas têm ficado mais raras. Segundo o diretor executivo do Instituto Baccarelli, Edilson Ventureli, as empresas já não estão tão engajadas quanto em 2020.
“Ninguém imaginava que depois de um ano a economia estaria patinando, muitos pais sem recuperar os empregos ou sem capacidade de geração de renda. A partir de outubro, as doações chegaram a zero, o que é preocupante porque a fome não deixou de existir na favela. Ficamos dois meses sem conseguir entregar as cestas para as famílias de alunos”, lembra.
Localizada no distrito do Sacomã, Heliópolis teve até fevereiro mais de 16 mil pessoas contaminadas pelo coronavírus, mais de 500 mortes por covid-19 e quase 100% dos leitos ocupados no Hospital de Campanha Barradas, montado na comunidade.
Além das doações bancárias, a frente Tocando Juntos por Heliópolis criou, em caráter de emergência, uma vaquinha, que tem como meta semanal a arrecadação de R$ 100 mil ou R$ 400 mil ao mês. O valor será usado na compra de cestas básicas.
“A campanha é para sensibilizar a sociedade civil. Muitas empresas não tiveram perdas, mas as doações saíram do radar de prioridade. São 800 famílias ajudadas pelo instituto. O dinheiro será concentrado em itens básicos, como arroz, feijão, macarrão. A gente até queria incluir um sorvete, que é um carinho, mas temos que conseguir matar a fome”, explica Edilson Ventureli.
Doações também podem ser entregues na sede do Instituto Baccarelli, que fica na Estrada das Lágrimas, 2.317, em Heliópolis. Há estacionamento no local.
Francisca das Chagas Vieira, de 57 anos, é moradora da comunidade e vende perfumes. Com a pandemia, a família de cinco pessoas vive de bicos do marido, que é pedreiro, e do salário de uma das filhas. A outra perdeu o emprego.
“Tem que se virar. Antes da pandemia, eu ia até quatro vezes no mercado. Agora é só uma e a conta não pode ser alta. Carne tá muito cara e frango tem que durar pra uns dois dias. Graças a Deus não chegou a ponto de passar fome porque tivemos ajuda do Baccarelli. De lá veio o principal. Vinha até sabão em pó, álcool, mas agora não vem mais e tem que comprar”, conta a moradora.
Uma das filhas de Francisca é Quezia Vieira Oliveira, aluna do Baccarelli há 10 anos. Aos 17, ela está no 3° ano do Ensino Médio e estuda em uma ETEC. “As aulas pela plataforma tão funcionando bem. Ano passado tive mais dificuldades com o EAD [Ensino à Distância]. Mas tem dias que a internet oscila bastante. Daí gravo vídeos tocando e mando por WhatsApp. Mas não é bom pros músicos porque não tem sincronia do vídeo e som, e não dá pra fazer ensaios com todos juntos”, diz.
Outra dificuldade enfrentada é a aquisição de cordas para o instrumento, que é dela. “Quando tem que comprar nova corda ou arco, que são produtos caros, isso não tá dando. Às vezes os professores tinham em casa e emprestavam. Mas é preferível comprar alimentos”, lembra a jovem.
De acordo com Edilson Ventureli, a conexão é um desafio no aprendizado: “Às vezes são cinco filhos e um celular antigo. Tem família que não tem grana para a internet. Fazemos atividades em vídeo para os menores e os pais acabam fazendo as aulas junto e serve como um escape pras famílias”.
O Baccarelli atende, por ano, mais de mil crianças e adolescentes a partir dos 4 anos e tem 16 turmas de musicalização infantil, 13 corais, 48 turmas de coletivos de instrumentos e quatro orquestras. Os concertos são feitos online e o programa de inclusão social através da música está mantido com patrocínios.
Apesar do agravamento da pandemia, o isolamento social não tem sido respeitado em Heliópolis. Em muitos casos, são casas ou cômodos pequenos com muitas pessoas da mesma família para dividir o espaço. Moradores relatam que é comum ver pessoas circulando sem máscaras e fazendo festas e eventos nas ruas e em casas.
Uma moradora de 28 anos que prefere não ser identificada conta que a situação é de desrespeito às regras impostas pelo governo na fase emergencial do Plano São Paulo. “Ninguém respeita, tem festa, baile, as filas nos caixas não têm distanciamento, ficam sem máscara. As pessoas acham que é brincadeira”, revela.
Ela e a irmã já tiveram sintomas de covid-19 e um vizinho morreu da doença. Ela tenta se proteger, mas mora de aluguel com outras sete pessoas, sendo quatro crianças.
“A gente fica isolado num quarto e cozinha. Meu marido tá desempregado e faz bicos, mudanças usando carrinho de supermercado, cata reciclado. Eu tô operada. A pandemia tirou nossa fonte de renda, que era a reciclagem. A gente vive praticamente de doações, porque desde o ano passado aumentou o gás e os alimentos. Já tivemos dias melhores, dá até tristeza de falar”, ressalta a moradora que nasceu na comunidade.
A estudante Quezia Vieira confirma que muitos amigos vão a bailes e festas: “Muito triste. Mas hoje tá até pior do que era antes. Tem bares aqui na rua com música alta. Se a gente fala alguma coisa, eles respondem pra gente cuidar da nossa vida. A polícia vê e não faz nada”.
Francisca das Chagas acredita que os moradores deveriam ter mais consciência. “Pessoal não se importa em cuidar, bebem e fumam juntos, fazem churrasco, aniversário. Quem sai com a máscara é que é visto como o diferente”, conclui.
Com o término do pagamento das parcelas do auxílio emergencial, a situação se agravou. Mais famílias passaram a precisar de cestas básicas e, na contramão, o número de doações caiu.
Segundo a UNAS, no ano passado foram doadas mais de 40.800 cestas, sem falar na distribuição de produtos de limpeza. Em fevereiro deste ano, havia apenas 210 cestas. “Muito pouco. A gente acompanha 10 mil famílias, 5 mil são as que mais precisam, mas não são só elas. Esse número é muito preocupante. Já temos crianças de alta vulnerabilidade com perda de peso, desnutrição”. ressalta Cleide Alves.
A alta do preço de alimentos também impactou nas doações. Sempre que possível, uma proteína como frango, salsicha, linguiça, ovos e até verduras eram incluídas nas cestas, agora ficou mais difícil.
Qualquer tipo de doação pode ser entregue na sede da UNAS, que fica na rua da Mina Central, 38, em Heliópolis, de segunda a sexta-feira das 10h às 16h. É possível doar dinheiro também. Da sede, os produtos são distribuídos para 12 núcleos de entrega até chegar às mãos das famílias cadastradas.
A presidente da UNAS lembra que, além de comida, a comunidade precisa de emprego. “Governo tem que trazer alguma renda para essas pessoas. A gente paga imposto. O país precisa de emprego e temos costureiras de qualidade, chocolateiras, que podem ser contratadas e gerar renda. Tá dramático e a gente não sabe quando essa pandemia vai acabar. Mas não estamos sozinhos”, enfatiza.
R7