Há exatos 50 anos era realizado o primeiro transplante de coração no Brasil. O paciente de estreia, o boiadeiro João Ferreira da Cunha, de 23 anos, viveu apenas 28 dias com o novo órgão. Sem ainda o advento da ciclosporina, droga imunossupressora que controla o sistema de defesa do organismo, seu corpo o rejeitou.
Além do controle da rejeição, esse tipo de cirurgia obteve outros avanços ao longo desse período. Hoje, a expectativa de vida de pacientes com o novo órgão é de mais de 15 anos em 60% dos casos, de acordo com o cardiologista Fábio Gaiotto, coordenador da equipe cirúrgica de Transplante Cardíaco do Adulto do Núcleo de Transplantes do Incor, onde foi realizado o primeiro transplante de coração do país, considerado também o primeiro da América Latina e sexto do mundo.
Desde 1995, quando a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) iniciou seus registros, houve 4.366 transplantes de coração no país.
A enfermeira Agnes Garcia, 56, foi uma das pessoas que ‘ganhou’ um coração novo. Diagnosticada com miocardiopatia hipertrófica, que evoluiu para insuficiência cardíaca, ela foi submetida ao transplante há quatro anos após quatro meses e meio de espera.
“Foi sofrido porque nesse período fiquei muito debilitada. Os órgãos já não estavam funcionando bem, os rins precisavam de diálise, tudo porque o coração não funcionava”, afirma.
Ela se lembra de noite em que recebeu o telefonema do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor), da Faculdade de Medicina da USP, de São Paulo. “Me disseram: tem um coração para você”.
Segundo ela, houve complicações após a cirurgia. Agnes conta que sofreu um AVC e ficou 15 dias “fora do ar”. “Não reconhecia ninguém, até receber uma medicação que colocou meu cérebro no lugar”, afirma.
“Eu só podia agradecer. Olhava para as minhas mãos e sentia o coração pulsar na ponta dos dedos. Antes eu não sentia. O coração não irrigava as extremidades. Quando percebi o sangue pulsando, foi uma sensação de vida que eu não tinha mais”, completa.
De acordo com dados do Registro Brasileiro de Transplantes, há 1.649 pessoas à espera de um coração. No ano passado, foram realizados 380 transplantes de coração no Brasil, em 12 estados e no Distrito Federal – o índice do primeiro trimestre deste ano será divulgado na segunda-feira (29).
Distrito Federal é líder em “corações novos”
O recordista de transplantes de coração no país no ano passado foi o Distrito Federal, com 12 por 1 milhão de habitantes – a média nacional é de 8. Segundo a ABTO, a taxa de aproveitamento dos órgãos foi de 11,1% em 2017.
“Isso reflete que muito deve ser feito na manutenção dos potenciais doadores, nos aspectos logísticos e nos critérios de aceitação pelas equipes. Pois, em condições ideais e com a taxa de aproveitamento esperada (40%), poderiam ter sido realizados 1.374 transplantes, em vez dos 380 em 2017”, informa o relatório.
Os transplantes cardíacos estão crescendo – houve aumento de 6,4% de 2016 para 2017. Nos últimos dez anos, o aumento foi de 100%, segundo a ABTO.
Os órgãos mais transplantados no país são córneas, rim e fígado, de acordo com a entidade. Foram 15.212 córneas, 5.929 rins e 2.109 fígados doados no ano passado.
Ainda segundo dados do ABTO, a taxa de doadores cresceu 14%, atingindo 16,6 por 1 milhão de habitantes.
Primeiro coração foi de vítima de trânsito
O primeiro transplante de coração do Brasil foi realizado no Incor pela equipe do cardiologista Euryclides Zerbini. O doador foi Luís Ferreira Barros, vítima de acidente de trânsito, que teve morte cerebral declarada na noite anterior à cirurgia, 25 de maio de 1968.
Foram realizadas outras três tentativas em 1968, mas os três pacientes morreram. Por causa disso, os transplantes foram suspensos durante 18 anos até que surgisse a ciclosporina. Somente em 1984, esse tipo de cirurgia voltou a ser realizada no Incor, em São Paulo, que ocupa atualmente a sétima posição no mundo em número de transplantes de coração.
De acordo com Gaiotto, desde o dia 26 de maio de 1968 até hoje, o principal avanço em transplante se deu em relação à solução encontrada para se preservar o coração.
Naquela época, o órgão conseguia ficar muito pouco tempo fora do corpo, então, o transplante precisava ser feito dentro do mesmo hospital, do mesmo ambiente cirúrgico. “Não era possível fazer o transporte à distância. As soluções de preservação evoluíram e, hoje, nós conseguimos preservar um órgão por até cinco horas”, afirma.
Outro avanço, segundo Gaiotto, é o controle da rejeição. Ele explica que, depois da adoção da ciclosporina, no início da década de 1980, o resultado do transplante melhorou muito e o uso do medicamento se tornou uma prática.
“A sobrevida hoje é bem maior. Costumo falar que a sobrevida de cada transplante depende muito da imunologia e do que vem vindo de medicação nova. A evolução foi tão rápida nos últimos cinco anos, imagina o que pode acontecer daqui a 15?”, diz.
Segundo ele, o país poderia ter um maior número de transplantes se houvesse um maior número de doadores. “Este é o principal desafio”.
O cardiologista explica que um doador pode ajudar de seis a oito pacientes. “Pode doar pulmões, coração, fígado, rim, pâncreas, córneas, ossos e pele”.
O uso de coração artificial já é rotina em países desenvolvidos, de acordo com Gaiotto. Ele afirma que esse tipo de coração é utilizado como ponte para futuros transplantes, permitindo sobrevida, para o paciente que aguarda por um “coração de verdade”, de até quatro anos.
“No Brasil, o uso ainda é pequeno. São dispositivos muito caros, mas a prática já existe e está chegando ao país. Esperamos que, nos próximos anos, seu uso aumente bastante, seja como ponte ou como terapia de destino, quando o paciente não tem condições de fazer o transplante por causa de alguma outra doença. Nesse caso, ele coloca a bomba artificial e pode viver por mais quatro ou cinco anos”.
R7