O movimento contra a vacinação é fruto de ignorância e ameaça uma das maiores conquistas da humanidade no século 20.
A avaliação é do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), em entrevista à BBC News Brasil.
“E, quando sobra ignorância aqueles que querem destruir conquistas da humanidade, eles vêm um campo fértil”, diz. Mandetta afirma que o Brasil tem feito um esfoço para conter epidemias, com vacinação em massa, e diz que o sistema de imunização brasileiro é referência internacional. “É um patrimônio que a gente tem que zelar”.
Ele defendeu, ainda, o uso medicinal da maconha, mas diz ser contra o “uso banalizado em óleos, cremes e roupas”. Para o ministro, é necessário “evidência científica”, citando o uso do canabidiol, uma das 113 substâncias químicas encontradas na maconha, e hoje usado no tratamento de epilepsia.
Sul-matogrossense da capital Campo Grande, Mandetta é médico formado pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro (RJ). Ele fez residência no serviço de Ortopedia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – o serviço era chefiado pelo pai dele, o também ortopedista Hélio Mandetta, que foi vice-prefeito de Campo Grande, nos anos 1960.
Mandetta entrou para a política em 2005, assumindo a Secretaria de Saúde da cidade de Campo Grande, no governo de Nelson Trad Filho (MDB), conhecido como Nelsinho Trad. E, em 2010, elegeu-se deputado federal, cargo para o qual foi reeleito nas duas eleições seguintes.
Assumiu o Ministério da Saúde em janeiro de 2019, com o aval do então ministro extraordinário da transição e atual ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), mas o Democratas trata as indicações como escolhas pessoais do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
À BBC News Brasil, Mandetta falou também sobre o novo Mais Médicos, explicando que profissionais deixarão a condição de bolsistas para terem contratos regidos pela CLT, e terão de se especializar, durante os primeiros dois anos, em saúde da família. A remuneração, hoje de R$ 11,8 mil, vai aumentar e variar de acordo com a região.
“Não vai ser aquela coisa do programa antigo, de colocar médico em Brasília, em Florianópolis. Vai ter critérios de vulnerabilidade muito claros para que a gente possa transformar o patamar da saúde nessas regiões”, disse. Para Mandetta, o atual modelo dos Mais Médicos “parece bico”.
O ministro esteve na segunda-feira, 24/06, em Londres, participando de um programa de cooperação em saúde lançado pelo Reino Unido que tem o Brasil entre os beneficiários. Leia os principais trechos da entrevista concedida por telefone.
BBC News Brasil – O sr. pode falar sobre a nova parceria com o Reino Unido? O valor não é tão alto, considerando o orçamento da Saúde. São R$ 70 milhões em quatro anos e o orçamento é de quase R$ 130 bilhões por ano. O que dá para fazer com esse dinheiro e o que estão planejando?
Luiz Henrique Mandetta – Na verdade, o dinheiro é importante. No nosso país, todo dinheiro é bem vindo. É para custear exatamente essa troca de experts em atenção primária, em epidemiologia e em genética. Estamos nos organizando para abrir um instituto brasileiro de genética porque a terapia genética vai ser a grande arma contra doenças de difícil solução no passado e que estão chegando com um custo extremamente elevado.
O Brasil não pode ficar muito longe dessa técnica e (eles) estão avançados no programa na Inglaterra. E mais: eles têm expertise em hemoderivados. (A Inglaterra) é o país de primeiro mundo que tem mais similaridade com nosso sistema. É uma aproximação não tanto pelo valor do fundo, mas pelo valor do saber acumulado do NHS (sistema de saúde do Reino Unido).
BBC News Brasil – O sr. já disse ter uma ideia de criar para os cubanos que ficaram no Brasil um curso de saúde da família. O que falta para sair do papel?
Mandetta – Por uma questão de solidariedade, a gente tem que estender a mão para ver se consegue habilitá-los para o nosso sistema de saúde, dentro dos nossos princípios. Dos direitos de ir e vir, de liberdade, de receber o salário na integralidade, coisas normais para nós, mas que eles estavam em regime exceção. O que a gente quer é que o programa… (cumpra) o desafio de levar o médico de saúde da família para as regiões de maior vulnerabilidade.
BBC News Brasil – E como está a remodelação dos Mais Médicos? Como vai ser o novo programa?
Mandetta – Do ponto de vista interno, da (pasta da) Saúde, ele já está ok. Agora, a gente está numa fase de conversar com o MEC (Ministério da Educação), porque tem uma parte que envolve a pós-graduação, a residência.
A gente precisa dialogar com eles para ver se vai ter alguma alteração. E (falta) fechar com (o Ministério da) Economia. A gente já tem o valor e o orçamento do programa, e (vai) apresentar para o presidente para ele ver se aquilo ali está dentro de uma medida que possa prosperar.
BBC News Brasil – A ideia é que os profissionais deixem a condição de bolsistas para serem regidos pela CLT e há a previsão de aumentar um pouco a remuneração.
Mandetta – Exato. Mas não é nada do que a gente tinha mais ou menos no nosso orçamento. É uma mudança de como fazer essa inserção com qualidade. O vínculo é o que determina a qualidade e é determinante para a pessoa continuar (no Mais Médicos). Esse modelo atual, que é de seleção simplificada, de bolsa, é visto como um vínculo muito incipiente. É quase como se fosse um bico esse modelo atual. A gente não quer isso.
BBC News Brasil – É por isso que muitos médicos brasileiros acabam desistindo?
Mandetta – É, porque você não tem previsibilidade. Você começa, é uma atividade temporária, bolsista. Pode ser renovada ou não. As pessoas querem construir suas vidas com o mínimo de previsibilidade. Estamos formando, ano após ano, um número maior de médicos.
Formamos 28 mil médicos por ano e vamos chegar a brevemente a 35 mil médicos por ano se não abrirem novas faculdades. É um número expressivo, levando em conta que um médico trabalha por três, quatro décadas. A gente precisa indicar a essas pessoas qual é o caminho que eles vão ter no poder público.
BBC News Brasil – O senhor disse que está discutindo o novo Mais Médicos com o MEC porque haverá uma pós-graduação. Participar do Mais Médicos também vai significar ganhar uma qualificação profissional?
Mandetta – Todo concurso público tem um estágio probatório, que são os primeiros dois anos. Nesses dois anos, nós não só vamos selecionar mas vamos capacitar.
Queremos todos eles especialistas em saúde da família. Se você vai tomar uma decisão de fazer uma atenção primária com qualidade, não vai botar um médico sem qualificação. É como colocar um ortopedista sem especialização em ortopedia.
Atenção primária é a mais difícil de todas as especialidades médicas. Para isso a gente tem que selecionar bem, capacitar bem a educação continuada e dar suporte, com telemedicina, para amparar melhor o diagnóstico, para os médicos conhecerem melhor o território em que estão inseridos, fazerem planos de saúde e intervenção na população.
A gente deve procurar alguns indicadores de saúde muito objetivos, como mortalidade infantil, câncer de mama, de cólon, para (os médicos) saberem quais são os compromissos deles com aquela população. Não dá para fazer uma receita de bolo para o Brasil, o Brasil é muito grande.
BBC News Brasil – A remuneração vai variar de acordo com a região?
Mandetta – Também. Uma comunidade indígena, por exemplo, pode ficar 15 dias, 20 dias. Volta e vai outro.
BBC News Brasil – Quer dar mais flexibilidade nesses casos…
Mandetta – Exatamente. E fazer com que as pessoas sejam mais valorizadas para o chamado Brasil profundo, das dificuldades. Não vai ser aquela coisa do programa antigo, de colocar médico em Brasília, em Florianópolis. Vai ter critérios de vulnerabilidade muito claros para que a gente possa transformar o patamar da saúde nessas regiões.
BBC News Brasil – Quantas vagas estão abertas hoje? Qual a porcentagem que não foi preenchida?
Mandetta – Quando entrei no Ministério da Saúde, foi exatamente quando Cuba tinha decidido tirar mais de 8,5 mil médicos cubanos. Depois disso, fizemos mais um processo seletivo porque o governo anterior não tinha feito.
Tinha 2,5 mil lugares que haviam tido médico no passado e abrimos para esses. Para esses, conseguimos alocar 85%; 15% saíram. Estamos em processo seletivo agora. Enquanto a gente não construir esse sistema perene, sustentável, a gente vai manter o processo seletivo para não haver interrupção na provisão desse profissional.
BBC News Brasil – O médico Dráuzio Varella já defendeu que profissionais formados em universidades públicas deveriam ser exigidos a trabalhar como voluntários por algum período para retribuir a qualificação e a alta qualidade do ensino que tiveram. O senhor acha ser possível incorporar ao currículo das universidades federais o trabalho voluntário após a formação?
Mandetta – Aí não é trabalho voluntário, mas trabalho civil obrigatório. Se a gente for partir para o trabalho civil obrigatório no Brasil, deveria ser para todas as profissões. Não é só o médico. Lá onde falta o médico, falta o advogado, falta professor de português, de matemática, falta teatro, falta jornal, falta tudo.
O médico chama atenção porque a saúde é dever do Estado, está na Constituição. Se for partir por esse raciocínio, acho que tem que ir todo mundo. Todos os advogados, filósofos, engenheiros, para o trabalho civil comunitário. Se for todo mundo, poderia ser uma boa ideia.
BBC News Brasil – Gostaria de saber sobre a decisão da Anvisa, de colocar sob consulta o cultivo da maconha para fins medicinais. O sr. acha que é só uma questão de tempo? O Brasil está caminhando para isso?
Mandetta – O que a gente tem que saber é qual é a utilidade científica. Não posso dizer, por que é uma planta que tem efeito alucinógeno, não posso dizer que não vou pesquisar. Senão, não utilizaria morfina, não utilizaria fentanil. São drogas que os médicos têm no seu arsenal para enfrentar as doenças. Elas estão no arsenal dos médicos porque existem evidências científicas que eles podem usar.
No caso do canabidiol, parece haver evidência científica para uso em crise convulsiva. Se for isso, para pesquisa, para esse ponto… Se derivarmos para fazer creme para rosto, óleo, se vamos beber, passar xampu… se não tem evidência científica acho que não tem motivo.
BBC News Brasil – O senhor acha que o que não tem evidência científica…
Mandetta – A gente deve se ater ao uso medicinal. O que a gente entende que há indícios, estudos científicos para uso medicinal do canabidiol, principalmente para usar para crises convulsivas reentrantes. A gente deve fazer pesquisa e ir à direção do que é científico para a gente dar o arsenal aos profissionais, que deem aos seus pacientes medicamentos devidamente prescritos e controlados.
Agora, esse uso banalizado de outros países, de abrir lojinha em qualquer lugar, óleo, produtos de limpeza… a parte do THC que não tem evidencia científica, zero, isso a gente não concorda, não deve haver progresso nisso daí. Deve ter na parte necessária medicinal, como a morfina. A morfina é um medicamento que causa uma adição (dependência) absoluta, é oriunda da papoula e a gente utiliza porque há uma necessidade na parte medicinal.
BBC News Brasil – Esse assunto está bem resolvido no governo ou ainda é começo da discussão?
Mandetta – A posição é muito clara para o governo. O que a gente entende é: para uso com evidência científica, para aquelas situações do ponto de vista científico.
BBC News Brasil – Falando em evidência científica, em vários países do mundo o movimento antivacina tem crescido e o Brasil começa, ainda de forma incipiente. Já existem blogueiros e youtubers contra vacinas. O sr. é médico. Por que movimentos como esse ganham força e qual é o perigo?
Mandetta – Eu acho que sobra ignorância. E quando sobra ignorância, aqueles que querem destruir conquistas da humanidade têm um campo fértil. Usam das suas próprias ignorâncias e proliferam. Se tem uma imprensa, um jornalista responsável, eles têm que dizer quais são as fontes. Ali naquela babel (da internet) pessoas se sentem à vontade com suas meias verdades e as suas convicções.
Acho que (os antivacina) são uma minoria. As vacinas são uma conquista da humanidade, talvez o maior passo do século 20 em saúde pública do mundo. A gente erradicou a varíola em 1969, 70. A gente terminou uma doença.
Só quem não sabe o que é uma cegueira, uma pneumonia, uma encefalite por sarampo… Enfim, a gente vê que é uma questão de geração. Se você perguntar às avós… Minha mãe procurou garantir as vacinas aos filhos porque via criança tendo pólio.
Hoje, parece que as pessoas acham que pólio é coisa de extraterrestre. A gente que viu sabe muito bem do que está falando. Uma pessoa mais jovem pode achar que não existe, que é coisa do século passado, não tem noção da gravidade.
BBC News Brasil – O sr. acha que há motivo para o Ministério da Saúde para fortalecer a comunicação, passar essa mensagem…
Mandetta – A gente tem feito um esforço. Tivemos a diáspora da Venezuela, quase três milhões de venezuelanos saíram de qualquer jeito. A gente começou com um surto de sarampo em Roraima, pegou os yanomami, desceu para Manaus e a gente conseguiu cercar com vacina. Seguramos, chegou em Belém frágil.
Depois a gente teve, no Carnaval, oito navios com turistas europeus, franceses que têm índice de vacinação baixa, pessoas com sarampo a bordo querendo descer na costa por conta do Carnaval. A gente teve que entrar no navio, vacinar oito mil pessoas e mesmo assim a gente não sabe se os que desceram estavam no período de incubação. Nova York decretou emergência.
Lógico que a gente vai fazer o dever de casa. Nosso programa de imunização é uma das partes mais fortes do SUS e temos um sistema de vacinação respeitado. É um patrimônio que a gente tem que zelar.
R7