Um pedido de ajuda feito com olhos cheios de lágrima, alguns ainda não aprenderam a falar, outros não sabem o que dizer. Essa é a realidade vivida por 800 crianças abusadas sexualmente na Bahia desde o inicio de 2016. De acordo com os dados do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), 3 mil crianças são vítimas de abuso sexual por ano na Bahia e Salvador é a terceira cidade que mais registra casos. Medo faz parte do dia a dia da vítima e de testemunhas, já que alguns abusadores se escondem atrás de cargos importantes e tentam invalidar ou esconder o abuso. Porém, o que, às vezes, surpreende é que não existe um perfil de abusadores. Pode ser qualquer um, em qualquer lugar, sexo masculino ou feminino, jovens ou idosos, familiares, amigos ou até mesmo professor de escola. Nem sempre o abusador se esconde em uma rua deserta.
Uma campanha do Ministério Público da Bahia em parceria com a cantora Ivete Sangalo foi criada a fim de estimular a denúncia e dar voz àqueles que não têm, trazendo mais visibilidade para a causa. Não denunciar é ser conivente com o abuso. É necessário combatê-lo, além de conscientizar a população sobre os danos psicológicos trazidos à criança. Uma criança abusada nem sempre vai conseguir falar sobre o abuso, por isso é necessário que os familiares fiquem atentos às mudanças de comportamento e aos sinais demonstrados por eles. Para entender melhor sobre o assunto, o Varela Notíciasconversou com o psiquiatra Carlos Tadeu Lima.
O médico afirma que os sintomas são variados e por isso não é possível encontrar os mesmos sintomas em crianças diferentes, já que depende do nível de abuso que a criança está sendo submetida. “Algumas crianças se afastam do ambiente em que estão sendo abusadas. Se elas estão sendo abusadas dentro de casa, por uma pessoa que ela supostamente deveria confiar, ela tem a tendência de procurar outros ambientes em que possam se sentir seguras.”
1- A criança pode ficar hiper sexualizada
2- A criança pode ficar extremamente submissa
3- A criança pode ter comportamentos de regressão a uma idade anterior como chupar dedo, urinar na cama ou não conseguir dormir sozinha.
4- A criança pode ter manifestações de ansiedade e insônia.
5- A criança pode ter dificuldade que antes não apresentava na escola
O médico conta que a criança abusada sexualmente sempre vai mostrar de alguma forma que algo não está bem. “É algo que está violentando não só o corpo dela, também violenta o amadurecimento de sua personalidade.”
É importante que a família e os professores estejam atentos, porque a criança vai precisar de um suporte emocional e um tratamento psicológico. Um abuso não vai ser superado sozinho. “O abuso também deixa sequelas físicas que são, às vezes, mais fáceis de perceber. Vítimas de abuso sexual podem ter dores, coceira, sangramento ou contusões na genitália ou na região ao redor, dificuldade de andar ou sentar ou sinais de uma infecção no trato urinário.” afirma o médico.
O médico explica também que o abuso gera sequelas que podem perdurar até a vida adulta. “Já desde a infância, a criança começa a se sentir um objeto sexual, de desejo, do adulto e isso coloca em risco toda a formação de sua personalidade. Não é incomum que essa criança desenvolva uma certa frieza e falta de capacidade de empatia com o sofrimento alheio. Ela própria pode se tornar um abusador de crianças.”
Para evitar esses abusos, é preciso de uma mobilização da sociedade, despertando para o problema. Vigiar os ambientes em que elas estão inseridas e perceber as suas mudanças de comportamento. Como é possível ver em muitos casos, como o Coronel que foi flagrado abusando de uma criança de 2 anos, uma pessoa que deveria proteger a criança, a machucando. Por isso o “Disque 100″ é tão importante, já que anonimamente é possível salvar a vida de uma criança. “Às vezes o abusador está dentro de casa, mas uma vez que isso é detectado, é necessário investigação, e se comprovado, a família e a criança vão precisar de apoio psicológico.”
Alguns abusos acontecidos na Bahia no passado foram muitas vezes silenciados, por falta de conhecimento sobre como denunciar, por medo, ou por não saber como comprovar o abuso. Andreia [Nome fictício], de 23 anos, conta em depoimento que nunca denunciou seu abusador mesmo com sua família sabendo, já que não tinha como comprovar na época.
“Eu tinha oito anos, morava na Bahia e cursava a segunda série do ensino fundamental na época. Ele era pai de uma amiga minha. Depois da aula, eu fui para a casa dela estudar como fazíamos sempre. Ele trabalhava na escola que eu estudava, inclusive. E, em um determinado momento do dia, ele disse que era para cada uma parar de estudar e começar a ajudar a arrumar a casa. Ele pediu para eu estender a roupa. Eu acabei ficando contra a parede, onde o varal ficava preso, para estender a roupa, e foi quando ele veio e ficou se esfregando em mim enquanto eu estava de costas. A penetração em si não aconteceu, mas o que ele fez comigo durou mais ou menos cinco minutos. Eu fiquei imóvel. Não conseguia me mexer, não conseguia pensar. Só me sentia muito estranha e muito mal porque eu sabia que aquilo não era certo, mas eu não tinha força para reagir. Além de ele ficar esfregando o pênis em mim, ele ficava fazendo sons como se estivesse fazendo sexo comigo. Foi horrível. Fiquei tão traumatizada com o que aconteceu que eu tive a minha memória reprimida. Assim que ele saiu, a minha mente bloqueou o que aconteceu. Eu não lembrava. Voltei pra casa, continuei a minha vida normal, e foi quando eu tive um pesadelo e lembrei de tudo o que aconteceu. Eu acordei, fui para a escola, e não parei de pensar um minuto no sonho que eu tive. Quando eu cheguei em casa à noite, comecei a chorar compulsivamente. Meu pai e minha irmã ficaram sem entender. Ele me perguntou o que tinha acontecido. E, assim que eu contei, ele disse com certa rispidez: ‘Como você não me contou isso antes?’. Mas eu entendi que era mais preocupação do que qualquer outra coisa. Meu pai ficou muito revoltado, mas viu que não poderia fazer nada. Já a minha mãe, não agiu muito diferente. E como eles são muito religiosos rolou aquele papo de ‘entregar para Deus, que, de alguma forma ele seria punido’. É aquela velha história de que Deus é um tirano e vai punir quem faz o mal. Eu não acredito muito nisso, sabe? Eles não fizeram nada. Tentaram falar com ele, que disse que eu era uma mentirosa, e o meu pai disse que eu não estava inventando, me defendeu. Mas denúncia, essas coisas, não. Nada foi feito. Hoje, quando eu vejo alguém falar ‘ah, você tem que provar que sofreu abuso’, eu fico perplexa. Existem casos que não tem como comprovar. Só quem já passou por isso é que sabe como é. Eu passei. E eu não tive como provar. As pessoas pensam que ou você chega toda ‘rasgada’, com a cara inchada, foi estuprada e tudo ou não aconteceu nada. Como no meu caso não foi. Estava só eu e ele, como eu ia provar, sabe? A mesma coisa que aconteceu comigo, acontece ainda hoje com muitas meninas e ninguém fica sabendo.”
Muitas vítimas não sabem como denunciar e é ai que entra o papel do cidadão de fazer a denúncia. Quem é conivente com o crime, é tão abusador quanto quem o cometeu. De acordo com o Código Penal da Constituição Brasileira, o crime de “Omissivo Impróprio” também leva a punição. “Crime sexual contra menor de 14 anos é considerado crime hediondo e a constituição federal de 88, em seu art. 5º, diz que responderão pelo crime hediondo os mandantes, os executores e, quem podendo evitar, se omitir.”
Uma mãe que omite o abuso de sua filha, menor de 14 anos, por quem tem responsabilidade da integridade sexual, para não responsabilizar o culpado do crime, é tão culpada quanto ele e ambos serão julgados por estupro de vulnerável.
A formação da personalidade começa na infância e quando ela é marcada por um abuso, a forma de enxergar o mundo muda completamente. Quem não denuncia também violenta, disque 100 e salve a vida de uma criança.
Varela Notícias