Da Cidade de Deus ao topo do pódio na Rio 2016, Rafaela Silva valoriza como poucos o suor exigido para conquistar cada medalha. Mais do que isso, a carioca reconhece que o esporte a tirou de uma rotina de violência que se repete ainda hoje na última capital olímpica. A Rocinha, na zona sul, vive desde a última sexta-feira (22) uma disputa territorial entre facções do crime organizado que culminou na intervenção militar.
Rafaela viveu na pele a infância e a adolescência além da Cidade de Deus das telas de cinema. A comunidade, que chegou a ser uma das mais perigosas do Rio na década de 1980, sofria diariamente com tiros cruzando o céu e bandidos desfilando artilharia pesada pelas vielas quando ainda tinha a escola e o judô com meros escapismos de uma agressividade nas ruas. O cenário, segundo ela mesmo, é bastante parecido com o que é mostrado no noticiário que tenta não acompanhar.
Luiz Carlos e Zenilda, os pais da hoje dona de uma medalha olímpica (ouro) e de três mundiais (um ouro e duas pratas), apostaram no judô como forma de livrar Rafaela e a irmã Raquel das ilusões do tráfico de drogas. O então recém-criado Instituto Reação, montado pelo judoca Flávio Canto na comunidade, foi o local que abrigou a menina aos 8 anos e entregou a campeã mundial júnior aos 16.
Ao mesmo tempo que tenta focar apenas nos treinos e competições, a judoca se mostra preocupada com a integridade das crianças do projeto que não fechou as portas para a violência. Hoje, o Reação tem um polo na Rocinha, que atende aproximadamente 500 jovens. O local é também um dos centros de alto rendimento e constantemente conta com treinos do espelho vivo para os faixas preta dentro e fora dos tatames.
A disputa pelo poder na maior favela do País, que tem uma população estimada em 71 mil habitantes e está encravada entre a Gávea e São Conrado, começou quando três aliados de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, foram mortos por grupo ligado a Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, que herdou o comando da facção depois da prisão do primeiro, em 2011. Assim como as crianças que vivem a briga de facções na Rocinha, Rafaela também teve o desprazer de lidar com a morte de perto na infância na Cidade de Deus.
“Quando eu era bem jovem, com uns 5 ou 6 anos, lembro que estava passando na rua, aconteceu um tiroteio e, quando a gente foi olhar, tinha um cara caído umas duas ruas para frente, mas… Para a gente era normal. A gente vivia tendo que correr do tiroteio, mas nunca tinha visto uma pessoa caída na sua frente. A gente vê em televisão, na internet. É duro”, disse Rafaela, que lembra que “nem todo mundo escolheu morar na comunidade e que de repente sofre com o que está acontecendo.”
Com as inúmeras conquistas proporcionadas pelo judô, Rafaela experimenta hoje uma realidade diferente daquela de quando criança. Nem tanto por bens materiais, mas pelo relacionamento com outras pessoas. A atleta negra, de origem humilde, conta que inúmeras vezes sofreu preconceito. Talvez por isso, até hoje se comporte de maneira reticente, com a voz firme, também diante de gravador e câmera.
A brasileira teve de ler todo tipo de absurdo após sua eliminação por um golpe ilegal (catada de perna) em Londres 2012. Chamada de “vergonha da família” e “macaca” na coragem protegida pelo turbilhão das redes sociais, a judoca esteve perto de abandonar o esporte, mas esperou quatro anos para dar a volta por cima. Na Rio 2016, diante do seu público, conseguiu a redenção e acredita que pelo menos um pouco mais de respeito.
“Antes, passava na rua e, às vezes, por ser negra, as pessoas olhavam desconfiadas. Agora, as pessoas param para me cumprimentar, para elogiar o meu trabalho. É bem legal”, resumiu Rafaela.
Mesmo atual campeã olímpica, que lhe dá direito a ostentar o backnumber dourado no quimono, Rafaela teve um Mundial aquém do esperado. A brasileira perdeu logo na primeira luta, para a portuguesa Telma Monteiro, bronze na Rio 2016. Apesar de cabeça de chave em Budapeste, a brasileira sofreu em uma chave fortíssima, que não seguia propriamente o ranking mundial.
R7