A Organização das Nações Unidas (ONU) chega aos 75 anos, celebrados nesta semana nos debates de sua Assembleia Geral, sob as sombras da pandemia e da polarização da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China.
A Covid-19 turvou o clima de celebração, levando a discussões sobre o futuro pós-doença e tornando a reunião anual um evento virtual.
A partir desta terça (22), falarão líderes por meio de teleconferência, a começar por Jair Bolsonaro –a tradição dá a primeira palavra ao presidente brasileiro, neste caso ironicamente um crítico usual de organismos internacionais.
Mas é a rixa entre americanos e chineses que marca o momento da organização, que de resto teve sua existência definida pelo conflito.
Sua antecessora, a Liga das Nações, havia surgido em 1919 dos escombros da Primeira Guerra Mundial com o desígnio de evitar uma repetição da tragédia que ceifara 20 milhões de vidas.
Fracassou, com uma conta talvez quatro vezes superior de mortes no conflito seguinte, de 1939 a 1945.
Com o advento da Era Atômica, parecia imperativo criar o sonhado Parlamento das nações e evitar algo ainda pior.
Não é inusual que novamente um contencioso esteja a demarcar o futuro da entidade.
A Guerra Fria 2.0 entre EUA e China tornou a ONU um campo de batalha particular, assim como já havia sido durante a versão 1.0 entre americanos e soviéticos.
Naquele 24 de outubro de 1945, quando a entidade foi criada em San Francisco, o objetivo final era a manutenção da paz mundial.
Não é possível creditar a ausência de uma Terceira Guerra Mundial às Nações Unidas, claro, mas a simples existência de um fórum para a esgrima internacional já a tornava relevante. O palco central, seu Conselho de Segurança.
Ele é formado pelos vitoriosos reais da Segunda Guerra (EUA, União Soviética/Rússia e Reino Unido) e pelos levados de carona (França e China), não por acaso hoje as principais potências atômicas.
Seu poder de veto é um instrumento poderoso, usualmente combinado entre Moscou e Pequim, eixo alternativo ao Ocidente.
Nos últimos cinco anos, os russos apertaram o botão do não 14 vezes, os chineses, 5, e os americanos, 2. Franceses e britânicos não o fazem desde 1989.
A alteração da dinâmica internacional, em especial após o fim da Guerra Fria em 1991, implicou a discussão sobre a reforma do conselho.
Há uma questão clara de representatividade. Quando a ONU foi criada, o conselho com seus então 11 membros (incluindo os temporários) refletia 22% dos países filiados. Agora, seus 15 integrantes são apenas 8% do universo da Assembleia Geral.
O Brasil, candidato natural a um assento permanente assim como Índia, Alemanha e Japão, fez disso pedra de toque no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Foi ignorado, e hoje a perda de peso relativo da ONU não parece animar a diplomacia.
Mais: sob Ernesto Araújo, a chefia do Itamaraty passou a ver órgãos multilaterais como cabeças da Besta do Apocalipse de um certo globalismo com coloração marxista.
Como usual, tal discurso emula o que diz Donald Trump, o presidente dos EUA.
O americano reclama baseado na sua contribuição ao orçamento de US$ 3 bilhões (R$ 16 bilhões) anuais da ONU: 22% vêm da nação mais rica da Terra.
Trump, o segundo a falar na terça, é crítico contumaz do multilateralismo e deverá mirar problemas específicos dos americanos, como o programa nuclear do Irã, país com o qual quase foi à guerra em janeiro deste ano.
Aí ele difere dos chineses. O dirigente Xi Jinping, pelo que adiantou sua chancelaria, irá discursar em quarto lugar e fará a defesa dos entes multilaterais globais. Essa tem sido uma constante da ditadura comunista nos últimos anos.
Pequim saltou de contribuição ínfima, em 2000, para o segundo lugar (12%) em 2019.
Além disso, os chineses têm trabalhado sua presença nas agências da ONU, defendendo candidaturas próprias ou de aliados, como nunca antes.
Seu apoio ao titular da Organização Mundial da Saúde (OMS) levou à crítica americana de que a entidade acobertou o papel visto como falho de Pequim no início da pandemia.
Ao fim, os Estados Unidos anunciaram a saída da entidade, levando a especulações sobre seu comprometimento com a ONU como um todo.
Noves fora arroubos ideológicos, há uma crítica objetiva acerca da efetividade das Nações Unidas e de algumas de suas 15 agências e 5 entidades associadas.
“Os organismos multilaterais não têm conseguido dirimir as disputas que vêm ocorrendo ao redor do mundo”, disse na sexta-feira em uma “live” o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão.
Essa avaliação é relativamente compartilhada pelo secretário-geral da ONU, o português António Guterres.
Em entrevistas recentes, ele ressalta que EUA, China e Rússia nunca tiveram uma relação tão disfuncional.
Ele tem defendido a criação de um “multilateralismo inclusivo”, unindo nações a empresas, ONG, bancos, centros de estudos e a academia, dado que a boa vontade de governos parece limitada.
Parece incerto o quanto isso será funcional, contudo.
As unidades do chamado sistema ONU, como a Organização Mundial do Comércio, são bastante impotentes ante ante a disputa encarniçada entre Washington e Pequim.
Mesmo o Conselho de Segurança nada pôde fazer para impedir que os EUA invadissem o Iraque em 2003.
Em qualquer emergência envolvendo seus membros, seja no mar do Sul da China ou num embate entre a Otan (aliança militar ocidental) e a Rússia no Báltico, parece improvável que poderá conter os acontecimentos.
A guerra civil na Síria ou qualquer um dos 33 grandes conflitos armados em curso no mundo não pararam por meio de exortações da ONU.
Os tribunais internacionais, salvo aqueles criados para conflitos específicos como o da ex-Iugoslávia, estão longe de se firmar.
A Corte Internacional de Justiça cuida de demandas entre países, e o Tribunal Penal Internacional, de indivíduos que cometem crimes contra a humanidade.
Os limites práticos da entidade a perseguem há anos. Sua burocracia, também.
A ONU não pode contratar um assessor administrativo sem que o famoso 5º Comitê, com gente de todos os 193 países-membros, aprove.
Isso tudo acaba por eclipsar o papel imenso que a ONU tem, em especial naquilo onde ela é mais funcional.
Hoje, 80 milhões de pessoas, ou aproximadamente 1% da população mundial, vivem sob o mandato do Acnur (Alto Comissariado para Refugiados da ONU). É o maior índice da história.
São pessoas atendidas onde os governos nacionais não conseguem dar conta.
O órgão faz 50 anos em dezembro, e sua convenção de 1951 inicialmente tratava de afetados pela Segunda Guerra Mundial. Em 1967, seu mandato foi expandido e, em 2003, tornado permanente –até então, tinha de ser renovado a cada três anos.
“O trabalho, infelizmente, está vinculado à sequência de conflitos. Ele é fundamental”, diz o porta-voz do Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho. Hoje são 130 países atendidos, em 507 localidades.
Não só guerras políticas são motivo para emergência: a crescente crise climática tem aumentado o número de refugiados mundo afora, e em breve veremos deslocamentos populacionais por conflitos devido à escassez de água.
O trabalho de agências como o Acnur são a principal bandeira dos defensores da ONU, juntamente à voz que é dada a países de menor envergadura política.
Como diz um diplomata ocidental que trabalha na ONU, que pediu para não ser identificado, o melhor das Nações Unidas é a ideia de que ela existe.
Como ela irá sobreviver a uma nova era de polarização na ordem mundial é outra questão. Os EUA, mesmo que Trump não se reeleja em novembro, tendem a seguir em colisão com a China.
Um presidente Joe Biden, por mais que os democratas tenham uma tradição de afinidade maior com a retórica multilateral, dificilmente vai tirar Washington de seu rumo atual. Guterres terá bastante trabalho pela frente.
Bahia Notícias