Um bilhão de pessoas vivem em condições precárias em todo o mundo. E a previsão é de que sejam 3 bilhões de habitantes até 2050, o que vai corresponder a um terço da população mundial.
“Se você quer um planeta sustentável, não vai ser sustentável se vocês não aproveitarem conhecimento, energia, inteligência e produtividade dessas que são uma em cada três pessoas”, afirma a pesquisadora norte-americana Janice Perlman.
Em seus anos de pesquisa, Janice desenvolveu um trabalho específico sobre o Brasil. Os anos eram 1968 e 1969 e ela aprendia português entrevistando moradores de três favelas do Rio de Janeiro. A investigação foi o pontapé inicial de sua carreira acadêmica e apontou mitos e preconceitos contra essas comunidades. Quarenta anos depois, Janice retornou à cidade para reencontrar seus entrevistados.
“A cidade cresceu menos do que as favelas”, avaliou a americana. “A violência prejudicou muito a vida dessas pessoas. Uma em cada cinco delas tinha um membro da família que morreu de homicídio. E aumentou a crença de que as pessoas nas favelas não prestam, que são criminosos e vagabundos”.
No fim da década de 60, Janice morou cerca de um ano e meio em comunidades do Rio para realizar seu trabalho, que contou com 750 entrevistas com pessoas de 16 a 65 anos. Uma das favelas escolhidas foi a das Catacumbas, totalmente removida em 1970.
A pesquisa de Janice Perlman resultou no livro O Mito da Marginalidade, em 1976, e, com seu retorno, ela escreveu Favela, quatro décadas vivendo à margem no Rio de Janeiro, lançado em 2010. Foi possível localizar 41% dos entrevistados da sua primeira viagem. Janice conta que a remoção dos moradores das Catacumbas para outras comunidades impactou duramente na renda e a possibilidade de ascensão social dessas pessoas. Mesmo antes do crescimento das facções criminosas, ela relata que já pesava um estigma contra os moradores das comunidades, e a remoção os afastou dos locais com maior oferta de trabalho.
Mito
“Havia o mito de que eram preguiçosos e não trabalhavam bem. A realidade é que eram os mais trabalhadores e mais dedicados em trabalhos que ninguém queria, com remunerações que ninguém aceitava e em condições que ninguém aguentaria. E eles ainda são marginalizados economicamente, e é pior ainda se você tem pele escura”, diz ela, que pondera: “A cidade não conseguia funcionar sem eles, e nem eles sem a cidade. Só que os termos dessa integração eram assimétricos. Eles deram muito do seu trabalho, sua cultura e suas vidas e receberam muito pouco”.
A pesquisadora constatou em 2009 que mesmo o aumento da escolaridade não era capaz de reduzir a desigualdade entre os moradores das favelas e a média dos cariocas. Ao contrário, a distância entre as rendas desses grupos crescia conforme aumentava a escolaridade, atingindo o pico na comparação entre as duas populações com 18 anos de estudo. Por outro lado, as rendas de ambos os grupos eram similares nas fatias com até três anos de escolaridade.
“Por que ficar na escola, se com 18 anos de escolaridade não se consegue ganhar nada?”, provocou Janice, que relatou que a maior parte dos netos e filhos dos primeiros entrevistados relatou ter sofrido menos discriminação de gênero, raça e de outros tipos que seus avós, mas 84% contaram que já sofreram discriminação por morar na favela. “Temos que pensar em como mudar a mentalidade. Não só do governo, mas de todos nós, de toda a sociedade”.
Em entrevista à Agência Brasil, a pesquisadora Janice Perlman contou um pouco mais sobre as conclusões de sua pesquisa e comparou o que melhorou e o que piorou na vida dos moradores das favelas do Rio:
Agência Brasil: O que melhorou na vida dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro?
Janice Perlman: Melhoraram bastante as condições de moradia. Nos anos 1968 e 1969, quase não havia casas de alvenaria, eram de madeira ou pau a pique e tinham um aspecto muito precário. Quando voltei nos anos 2000, as casas eram de alvenaria e já tinham água encanada e eletricidade em casa, não necessariamente paga e formal. E as casas tinham um nível de consumo de bens eletrodomésticos quase igual à média do município do Rio. Essa população pode pagar por esses símbolos de prestígio e, em um certo momento, houve uma propaganda dizendo que tantos milhares de brasileiros tinham entrado na classe média. Mas as medidas que determinavam o que era a classe média não levaram em conta educação, profissão e como são tratados em público e aos olhos da lei. Podiam até ser classificados como classe média pela cesta de eletrodomésticos, mas não podiam ser considerados classe média porque continuaram a ser tratados como invisíveis, perigosos e ignorantes.
Agência Brasil: E o que piorou?
Janice: A taxa de homicídio subiu muito e, em vez de temer que a sua casa fosse removida, passou-se a temer que a sua vida fosse removida. Outra coisa negativa foi que o sistema escolar nas favelas piorou, a assistência em saúde piorou e o poder de reivindicar melhorias nas favelas praticamente desapareceu quando o tráfico tomou conta. O tráfico ou a milícia passaram a determinar em quem as pessoas deviam votar, então eles perderam chances de se manifestar politicamente.
Agência Brasil: Quais preconceitos sobreviveram e quais pioraram, na sua opinião?
Janice: Havia o mito de que eram preguiçosos e não trabalhavam bem. A realidade é que eram os mais trabalhadores e mais dedicados em trabalhos que ninguém queria, com remunerações que ninguém aceitaria e em condições que ninguém aguentaria. E eles ainda são marginalizados economicamente, e é pior ainda se você tem pele escura. Há também o mito de que são culturalmente não adaptados à vida urbana, que nunca foi verdade e muito menos agora. Sua produção cultural de dança, música e festa, de raízes africanas, é fonte de cultura de todo o Rio.
Agência Brasil: Você constatou que a desigualdade de renda permanece mesmo com altos níveis de escolaridade. O que isso gera na sociedade?
Janice: Há muito preconceito em dar emprego para alguém que é morador de favela, por causa desse estigma. Isso é para o Rio de Janeiro um prejuízo incrível. É como escolher uma em cada três pessoas em Nova York para não ter educação, nem saúde, morar em guetos e, independentemente da inteligência, não receber nenhum preparo para a vida. É uma coisa absurda. Quem sofre também é a economia da cidade. E os moradores do asfalto também estão se arriscando por não enfrentar essa desigualdade de maneira sistemática e institucional.
Agência Brasil