A doença de Chagas está ligada à pobreza, segundo o epidemiologista Juan Carlos Cubides, da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF).
A palha, utilizada como matéria-prima em moradias precárias em áreas rurais e em cestas para alimentos, cria um ambiente propício para a proliferação do barbeiro, o transmissor da doença
Foi nesse contexto que a aposentada Maria Conceição de Jesus, 66, contraiu a doença antes dos 10 anos de idade. “Éramos muito pobres. Morávamos em uma casa de pau-a-pique forrada com esteira no interior da Bahia. Os percevejos me picavam muito, eu até brincava com eles. Para mim, era uma coisa normal”, conta ela, que descobriu que tinha Chagas aos 45 anos ao doar sangue (veja o depoimento abaixo).
Embora tenha sido descoberta há mais de cem anos, a doença de Chagas ainda afeta mais de 6 milhões de pessoas no mundo, sendo que apenas uma em cada dez é diagnosticada, de acordo com a MSF.
No Brasil, e estimativa é que haja mais de 1 milhão de pessoas infectadas pela doença. Cerca de 200 por ano têm o diagnóstico confirmado, segundo o Ministério da Saúde.
“A fase aguda da doença é muito rápida, dura apenas alguns dias, e os sintomas são inespecíficos, como dor de cabeça e febre. Portanto, a maioria das pessoas é diagnosticada já na fase crônica, quando há complicações, como coração ou intestino dilatados. Caso o diagnóstico seja feito na fase aguda, a chance de cura é de 100%”, explica Cubides.
Na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) de doenças negligenciadas, a doença de Chagas é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida por meio das fezes do inseto barbeiro. O médico explica que o inseto pica e inclusive é conhecido, em inglês, como “bicho que beija”, pois costuma picar no rosto.
No entanto, a doença não é transmitida pela picada em si, mas sim pelas fezes excretadas após a picada, que penetram na pele ou por orifícios como boca, nariz ou feridas, no ato de coçar.
Além do homem, outros mamíferos, como cachorro, gato e rato, albergam a doença.
Segundo o epidemiologista, a manifestação da enfermidade varia de acordo com o sistema imunológico de cada um. Caso não seja diagnosticada e tratada na fase aguda, se torna uma doença crônica, sem cura, que provoca complicações cardíacas ou no aparelho digestivo, locais onde o protozoário pode se instalar.
“Os problemas podem vir anos depois, às vezes décadas, vai depender do tipo de contaminação. Quando é por alimentação, por exemplo, ao comer açaí contaminado, a doença pode evoluir muito rápido”, afirma.
De acordo com o MSF, 12 mil pessoas morrem por ano de causas associadas à enfermidade. No Brasil, cerca de 6 mil morrem todo ano devido a complicações crônicas.
Desconhecimento sobre a doença
Neste sábado (14), Dia de Combate à Doença de Chagas, o Médico Sem Fronteiras lança a campanha “Um coração grande nem sempre é bom”, em referência a uma das complicações da doença, que é o coração dilatado, que estimula portadores da doença a compartilharem suas histórias. O objetivo é ampliar o conhecimento sobre a enfermidade.
Um levantamento realizado pela MSF com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em cidades brasileiras com históricos de casos ou centros de referência para o tratamento como Abaetetuba, Goiânia, Rio de Janeiro, Santo Cristo, São João do Piauí e São Paulo, revelou que, entre 53 pessoas em tratamento, 55% não tinham nenhum tipo de informação sobre a doença antes de receber seu diagnóstico.
O MSF desenvolveu projetos para portadores da doença de Chagas entre 1999 a 2016 em diversos países da América Latina, onde é endêmica.
Devido a uma campanha de controle de vetores da doença na década de 1970, o Brasil recebeu a “Certificação Internacional pela Interrupção da Transmissão de doença de Chagas” pelo Triatoma infestans, espécie exótica e responsável pela maior parte da transmissão, em 2006, de acordo com o Ministério da Saúde.
Cerca de 95% dos casos registrados da doença concentram-se na região Norte, sendo o Pará responsável por 85% dos casos, segundo o ministério. Em relação às principais formas de transmissão no país, são 69% por alimentação, 9% pela picada do inseto e 21% não foram identificadas.
Leia o depoimento de Maria Conceição de Jesus sobre a doença:
“Éramos muito pobres, pobres mesmo. Morávamos num casebre de pau-a-pique, uma casa feita de madeira forrada com esteira no interior da Bahia, cidade de Santo Antônio do Jesus. Os percevejos me picavam muito, eu até brincava com eles. Para mim, era uma coisa normal.
Minha mãe me deixou lá e veio tentar a sorte no Rio. Quando eu tinha 10 anos, vieram me buscar. Cheguei toda feridenta. Achavam que era alergia. Aqui vim morar em barraco também, mas não tinha percevejo.
Tive quatro filhos, em minha vida tudo foi normal. Me sentia bem saudável. Descobri que tinha doença de Chagas aos 45 anos quando fui doar sangue para a filha de uma vizinha. Meu sangue não serviu. Quando soube que eu tinha a doença, só chorava. Pensei que iria morrer a qualquer instante. Minha mãe tinha morrido da doença.
Nunca iria imaginar que um dia teria essa doença. Nunca tive sintomas. É uma doença silenciosa, apagada. Meu coração acelerava muito, tinha um abafamento, mas achava que era coisa normal. Mas tem gente bondosa no mundo que me encaminhou para o cardiologista, psicólogo. Tratei do coração, dos nervos, da mente. Tinha uma sensação de câimbras nas pernas, mas passou. As articulações doíam.
Tive depressão. Tenho que lutar sempre contra ela. Tomo remédio. Eu não sabia nem o que era depressão. Mas nada me alegrava, dormia e ficava três dias na cama. Isso lá pelos 50 anos. Pensava: o que vou fazer da minha vida se essa doença não tem cura?
Mas me tratei. A psicóloga falou: você não vai morrer da doença, mas com a doença. Não quero nem saber, estou bem aqui, fazendo meu crochê.”
R7