Reconhecida por seus feitos na tecnologia e na indústria, a China prepara-se para um salto que está sendo tratado por especialistas como uma nova revolução: investimentos de bilhões de dólares devem colocar o gigante asiático em definitivo no mapa do futebol internacional, mesmo que ainda esteja longe de ser o país da bola.
A segunda maior economia do mundo não tem medido esforços para abrir as portas de um mercado que, até pouco tempo atrás, a tinha como carta fora do baralho. Mas o jogou mudou.
Desde o início de 2015, a China investiu US$ 2 bilhões (R$ 6,44 bilhões) no gigantesco mercado de futebol europeu para comprar fatias ou a totalidade de clubes como o AC de Milão (Itália), o Inter de Milão (Itália) e o Manchester City (Inglaterra).
Também há quem diga que o Liverpool e o Hull City, ambos da Inglaterra, estão na mira dos fundos de investimentos chineses.
E, nos últimos meses, a jovem Superliga da China desembolsou algumas centenas de milhões de dólares para comprar o passe de grandes estrelas do futebol internacional, como o brasileiro Oscar, que deixou o Chelsea (Inglaterra) para jogar pelo Shanghai SIPG.
A operação foi estimada em US$ 73 milhões (R$ 235 milhões), valor que, se confirmado, supera o antigo recorde da contratação do compatriota Hulk para o mesmo time.
Prioridade
O futebol na China virou uma prioridade do governo do presidente Xi Jinping, ele próprio um fã do esporte.
Por trás dessa espécie de força-tarefa coletiva, que dominou o país nos últimos dois anos e envolve governo e empresas (estatais, ou não), há uma série de motivos.
O primeiro deles está no fato de a economia chinesa vir reduzindo o ritmo de expansão, depois de décadas de crescimento de dois dígitos.
Os chineses estão obcecados com a ideia de buscar novas fontes de renda para o país, sobretudo no setor de serviços, tecnologia e inovação ─ a bilionária indústria do esporte tem no futebol seu mercado mais bem-sucedido e um pouco de cada um desses elementos.
‘Soft power’
Para o especialista britânico Mark Dreyer, dono do site China Sports Insider , trata-se também de um gesto de aproximação com o público chinês e estrangeiro na forma de “soft power” (influência).
“Além da necessidade de buscar outras maneiras de promover o crescimento, existe ainda um movimento populista, já a China que tem muitos fãs de futebol que há muito tempo lamentam o fato de a sua seleção nacional ser tão ruim”, diz Dreyer, que se mudou para a China em 2007 para cobrir a Olimpíada de 2008, em Pequim.
Segundo o especialista, ocupar a 82ª posição no ranking mundial não combina com o “status” de segunda maior potência econômica do mundo.
“E ser bom em futebol mundialmente ajuda muito mais com o “soft power” do que várias medalhas de ouro em esportes considerados menores”, destaca.
Dreyer afirma ainda que promover o futebol vai ao encontro de outra iniciativa importante do governo na direção de um estilo de vida mais saudável.
No final de 2014, Jinping declarou em alto e bom som que a China seria um potência do futebol. Mas foi no último ano que o mundo dos negócios no setor esquentou para valer.
No ano passado, a Associação Chinesa de Futebol anunciou um plano ambicioso para colocar o país – hoje 78° no ranking internacional – entre os melhores do planeta até 2050.
E o governo do Partido Comunista, ao divulgar o 13° Plano Quinquenal, indicou que a indústria do esporte deve alcançar US$ 433 bilhões (R$ 1,4 trilhão), ou 1% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, até 2020. Hoje, esse percentual estaria próximo de 0,6% do PIB.
A previsão é de que até lá haverá 50 milhões de chineses jogando futebol, 20 mil centros de treinamento e 70 mil campos pelo país.
A Copa da China 2017, que começou na terça-feira na cidade de Nanning, no sul do país, é um outro exemplo do que está por vir.
Trata-se de um campeonato inédito que, apesar do número reduzido de participantes (quatro seleções internacionais) e da curta duração (cinco dias) não tem nada de acanhado.
Por trás do novo evento, que pretende entrar para a lista dos maiores do mundo, tornar-se anual e contar com pelo menos oito seleções, estão grandes nomes de investidores chineses.
Entre eles Wang Jialin, o homem mais rico do país e dono do grupo Wanda, que comprou no ano passado 20% do espanhol Atlético de Madrid. O grupo vem investindo maciçamente em tudo o que esteja relacionado ao futebol.
E enquanto o país não consegue cumprir a determinação do seu líder máximo, a jovem Superliga da China, hoje com 16 clubes, talvez já possa ser considerada uma potência.
Contratações caras
A economia do futebol na China promete movimentar o mercado no resto do mundo.
Nas últimas semanas, gerou furor na indústria futebolística ao anunciar contratações de destaque para grandes nomes do futebol internacional, muitos deles brasileiros.
No mês passado foi a vez do argentino Carlos Tévez, ex-Manchester United, cujo passe foi comprado pelo Shanghai Shenhua.
Diz-se que o brasileiro Ronaldinho Gaúcho teria recusado uma oferta de US$ 105 milhões (R$ 338 milhões), e o português Cristiano Ronaldo, eleito o melhor jogador do ano, de pouco mais de US$ 300 milhões (R$ 966,4 milhões).
A ousadia, que para muitos nada mais é do que um exagero, deu origem a um grande debate sobre a necessidade de se imporem restrições ao salários que podem ser pagos nos clubes chineses.
A autoridade máxima dos esportes está pensando em determinar um teto para eles para evitar gastos excessivos e garantir uma liga sustentável. Teme-se que as contrações milionárias gerem especulação no mercado chinês e impeçam o surgimento de novos talentos no país.
Atualmente, está limitado a quatro o número de estrangeiros autorizados a jogar em um time de futebol. Talvez essa seja mais uma razão para que o passe de grandes craques internacionais passe a ser mais valorizado do que nunca.
Para especialistas, todos os investimentos realizados até agora vão colocar a China no mercado de futebol. Mas fazer do esporte uma paixão nacional ou tornar a seleção uma potência é outra história.
É unânime a opinião de que falta criar a cultura do futebol entre os jovens. Talvez por isso tenha explodido o número de novas escolas pelo país, a maioria delas com técnicos e professores brasileiros. São milhares.
Para o brasileiro Juan Bonani, professor e técnico em uma das maiores escolas de futebol para jovens da China, a Soccer World, a única que representa o Manchester City no país, a estratégia de contratar jogadores a peso de ouro pode não ser a melhor.
“Fico na dúvida. Vou explicar usando o exemplo da contratação do Tévez. O salário anual dele permitiria oferecer para 10 mil crianças treinar futebol em um ano, ou mil em dez anos. Quando falamos em desenvolver o futebol na China, o melhor caminho é pelas crianças, para criar talentos, referências no futebol, coisa que ainda não há”, afirma Bonani, que jogou no Santos.
Mark Dreyer diz que alguns dos principais treinadores do mundo, como o francês Arsène Wenger, do Arsenal, ou o italiano Antonio Conte, do Chelsea, já manifestaram publicamente preocupação com o impacto do dinheiro chinês nas ligas.
Mas o especialista avalia que todos esses recursos podem não ser capazes de ajudar a China a melhorar a qualidade dos jogadores locais de maneira significativa.
“E com o sistema de cotas para estrangeiros, que pode ser reduzido no futuro, não vejo como a Superliga da China pode competir com as ligas europeias em termos de qualidade de jogadores por um bom tempo, se um dia conseguir”, diz.
Ele reconhece que jogadores vão continuar sendo transferidos atrás de grandes salários.
“Mas o número limitado de transferências não será capaz de mudar de uma vez por todas o cenário do futebol global”, conclui.
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