Na Argentina, ainda mais do que a média dos países, quando a economia vai mal, o presidente já tem sua estabilidade ameaçada. O país é caracterizado por um sindicalismo combativo e uma população sempre disposta a sair às ruas quando a crise social se alastra.
Esse quadro, apesar de estar presente nestes dias de turbulência pela qual passa o país, sob a administração do presidente Maurício Macri, tem algumas características específicas que, por enquanto, atenuam o clamor popular tão costumeiro, assim como mantêm Macri distante da possibilidade de renúncia, situação comum em governos anteriores.
Para Damian Nabot, colunista político do jornal La Nación, a atual crise é muito diferente das anteriores, que, devido ao caos econômico, levaram à saída prematura do ex-presidente Raúl Alfonsin (1989), e à renúncia de Fernando de la Rúa (2001), em momentos de inflação galopante.
A primeira diferença, segundo Nabot, diz respeito à questão econômica. Neste momento, Macri tem mais recursos do que seus antecessores, principalmente De La Rúa, que lidava com um sistema de câmbio fixo.
“Existem diferenças enormes entre as crises. Em 2001, o regime de conversibilidade havia imposto uma taxa de câmbio fixa e impedido o governo de usar a desvalorização como uma válvula de escape para problemas financeiros.”
A corrida dos correntistas para sacar dinheiro dos bancos gerou um bloqueio por parte do governo, o famoso “corralito”. Nabot considera que isso agravou ainda mais aquela crise.
“Em 2001, os bancos enfrentaram uma saída de depósitos, o que causou o “corralito”. O governo Macri tem uma “caixa de ferramentas” mais flexível para lidar com problemas econômicos. E a desvalorização (do peso) atual não foi acompanhada por uma grande saída de depósitos.”
Do ponto de vista político, Nabot afirma que Macri está em uma situação mais confortável do que De la Rúa, por exemplo, que perdera a estabilidade devido à ruptura de sua coalizão governamental. No ano anterior, Carlos Chacho Álvarez, líder da Frepaso (Frente para um País Solidário) abandonou a aliança com a União Cívica Radical, partido do então presidente.
“Macri não tem enfrentado uma crise política de igual magnitude.”
Nabot também ressalta que, neste momento, Macri conta com um programa social como trunfo. Ironicamente, foi colocado em prática pela ex-presidente Cristina Kirchner, em 2009.
“Após a crise de 2001, a Argentina implementou um sistema de contenção social para os setores mais vulneráveis, especialmente com a implementação da Asignación Universal por Hijo (um seguro social que alcança cerca de 4 milhões de crianças e adolescentes). Esta rede funciona hoje para evitar transbordamentos dos setores mais pobres.”
Crise grave
A crise atual, no entanto, é grave. Segundo dados do Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República da Argentina), no último trimestre a taxa de desemprego subiu de 9,1% para 9,6% (no quarto trimestre de 2017 estava em 7,2%). No primeiro semestre de 2018, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza chegou a 27,3%, o que significa um crescimento de 1,6% em relação ao mesmo período em 2017.
O Banco Central já elevou os juros para 72,8% (acima dos venezuelanos) no último dia 19. A dívida pública, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), deverá fechar em 65% do PIB em 2018, com uma queda gradual até 56% em 2021. Isso sem contar a inflação, que o FMI estima que fique em 40,5% neste ano e em 23% no ano que vem. O peso se desvalorizou mais de 50% em relação ao dólar em 2018, apesar de, na última semana, ter apontado uma leve alta.
Ao assumir o poder, em 2016, Macri sentiu que teria de lidar com pressões reais. E seu programa de austeridade acabou sendo implementado de forma gradual. Ele precisava se firmar, já que, mesmo vencendo a eleição, chegava como uma incógnita. Em uma sociedade muito calcada no peronismo, ele era o primeiro presidente não-peronista a ser eleito desde a redemocratização.
Desde o início de governo ele considerou o endividamento externo uma maneira de tornar a economia solvente. Mas questões externas recentes, como o aumento do juros americanos, provocaram um afastamento de investidores que estavam ajudando a financiar o mercado.
Neste momento, Macri, se viu sem alternativa e acelerou o endividamento com o objetivo de injetar dinheiro na economia. Entre junho e setembro, a Argentina teve um empréstimo aprovado de de US$ 57,1 bilhões (R$ 210,5 bilhões) com o FMI. E também recebeu empréstimos do Banco Mundial, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina).
Macri diz que esse capital servirá para financiar a economia. A oposição, comandada pela CGT, do veterano sindicalista Hugo Moyano, descontente com a política de austeridade, já realizou uma série de greves e tem encampado um discurso veemente contra a política do governo.
Em setembro último foi realizada a quarta greve geral durante o governo Macri. Serviços de transporte, hospitais, escolas, bancos e comércio foram fortemente afetados. Mas a estabilidade de Macri, que mantém a maioria no Congresso com sua coalizão Cambiemos, até agora, não.
Oposição dividida
A divisão da maior força política, o peronismo, tem contribuído para o governo se manter estável. Há nesse momento grupos divergentes, como o dos kirchneristas, encabeçados por Cristina Krichner, e a Frente Renovadora, do ex-membro do governo Kirchner, Sergio Massa (candidato a presidente nas últimas eleições).
Além disso, as últimas acusações de corrupção contra os governos Krichner contribuem ainda mais para fragmentar a oposição e dar fôlego para Macri, mesmo com sua popularidade caindo quase a metade, de 60% do início de mandato para os atuais 35,9%, segundo a consultoria local Rouvier & Asociados. Nabot destaca que a crise no peronismo interessa e muito a Macri.
“Cristina Kirchner permanece como líder da oposição com o maior fluxo de votos, mas um grande setor do peronismo não gostaria de tê-la novamente como chefe do partido. Essa divisão no peronismo favorece Macri. Paradoxalmente, é do interesse do governo que Cristina Kirchner continue sendo a principal líder da oposição.”
Mas com bem menos que a metade da população ao seu lado, Macri terá de fazer algo mais além de se manter no poder respaldado apenas por uma maioria parlamentar. E esse “muito mais” passa por controlar de forma minimamente sustentável a turbulência econômica.
Afinal, em um país movido a paixões, tudo pode mudar rapidamente. Macri está estável, mas não imume. Claro, a ciranda econômica pode levá-lo à reeleição em 2019. Mas também pode até levá-lo a uma queda. Diante disso, Nabot completa:
“Tudo depende do progresso da economia. Se no próximo ano a economia começar a mostrar sinais de recuperação, Macri tem chances de ser reeleito. Se a recessão se aprofundar, a governança será difícil.”
R7