Depois de dezenas de mortes suspeitas de macacos, que poderiam ter sido vítimas da febre amarela, e da corrida da população a postos de saúde em São Paulo para tentar se imunizar contra a doença, especialistas em doenças tropicais no Brasil levantam uma questão: por que não vacinar também os macacos contra o vírus?
Os primatas são hospedeiros do vírus da febre amarela. Eles não o transmitem a outros macacos ou a seres humanos diretamente. O contagio só aconteceria se um mosquito picasse o macaco infectado e, na sequência, picasse uma pessoa. Mas evitar que os macacos se contaminem com o vírus poderia, sim, ser uma maneira de aumentar a proteção à população das cidades.
“Há estudos no país para avaliar a eficiência da vacina em macacos e poderíamos facilmente ajustar a dose para cada uma das espécies que ocorrem em áreas verdes da cidade”, diz o virologista Edison Luiz Durigon, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo.
“As pessoas estão protegidas agora, mas e daqui a uma década? Vacinar os macacos cortaria a circulação do vírus por vários anos”, acrescenta Eduardo Massad, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Último ciclo urbano em 1942
A febre amarela tem uma versão silvestre, na qual o vírus circula entre macacos e neles se mantém por pouco tempo. Os vetores da doença são os mosquitos Sabethes e Haemagogus, responsáveis pela circulação do agente patogênico na mata e por eventuais picadas em humanos que ali adentram.
Se, ao ir para a cidade, uma pessoa não vacinada que hospeda o vírus for picada por um mosquito como o Aedes aegypti, pode deflagrar-se o ciclo urbano (homem-mosquito-homem), algo que não acontece no Brasil desde 1942.
O Ministério da Saúde afirma não existir vacina para febre amarela licenciada para uso em animais no Brasil. Caso essa alternativa esteja disponível no futuro, informa o órgão, seria necessário realizar uma série de estudos, tanto epidemiológicos como para validação da vacina, “além de avaliação da eficácia como medida de saúde pública, custo-efetividade, entre outros fatores”.
Há até 50 mil macacos em São Paulo
Nos macacos, a doença causa sintomas muito semelhante aos vistos em humanos: febre alta, prostração, icterícia, anorexia, danos no fígado e nos rins – além de hemorragia bucal e intestinal. Dali o cenário pode evoluir para agitação, coma e mudanças metabólicas irreversíveis. A morte costuma ocorrer entre três e sete dias depois do primeiro episódio de febre.
Em fevereiro de 2017, quando o surto de febre amarela silvestre se espalhou por Minas Gerais e Espírito Santo, a Sociedade Brasileira de Primatologia afirmou que os macacos são altamente sensíveis ao vírus. “Além disso, eles não têm acesso à vacina!”, exclamaram os autores do texto.
Na época, os animais estavam sendo agredidos e, por vezes, mortos pela população, devido a informações equivocadas sobre a transmissão da doença.
Depois que três primatas encontrados mortos – um bugio e dois saguis – foram identificados com a infecção em áreas verdes de São Paulo, a bióloga Juliana Summa, diretora da Divisão de Fauna Silvestre da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, afirma que pessoas que criam macacos têm soltado os animais sem planejamento, com medo injustificado do contágio.
Isso complica ainda mais, diz ela, a tarefa de inventariar os primatas que habitam 27 parques municipais, quatro estaduais e 14 áreas verdes paulistanas – que abrangem várias propriedades particulares.
“Não conseguimos estimar o número de saguis, por exemplo, porque temos populações (animais) que vão de quatro a cinco membros até outras com 20 a 30”, diz. “A gente teria de correr a cidade inteira para fazer a contagem desses animais.”
Com base em levantamento bibliográfico, o professor Eduardo Massad faz uma estimativa: “Calculo que existam, aproximadamente, de 40 a 50 mil primatas não humanos que podem ser hospedeiros da febre amarela em São Paulo. Considerando que a imunidade de rebanho para esse vírus seja em torno de 50%, não seria preciso vacinar todos os macacos, mas algo em torno de 20 mil deles.”
Vacinar macacos seria mais barato do que imunizar pessoas?
A imunidade de rebanho é a resistência de um grupo ou população à introdução e disseminação de um agente infeccioso. Ou seja, é a proporção crítica de pessoas ou animais acima da qual a doença desaparece.
“Não precisa ser um número exato, mas, se chegar perto da imunidade de rebanho, corta-se a circulação do vírus”, explica Massad.
Ele reconhece que a imunização de 20 mil macacos seria trabalhosa e custosa. “Mas, comparada aos 2,9 milhões de doses da vacina contra a febre amarela previstos para serem aplicados na população de São Paulo, me parece que a estratégia se justifica em termos de custo-benefício”, opina.
O Ministério da Saúde gasta R$ 4,42 por dose de vacina para humanos.
Para Juliana Summa, o ponto mais crítico da proposta é a captura dos primatas. “É uma tarefa muito difícil porque precisamos colocar armadilhas e prever que os animais cairão nelas; dependendo da espécie, ele cai uma vez e não cai mais.”
Ela lembra uma experiência com saguis vivida pela Divisão no parque paulistano Alfredo Volpi, que tem 142.200 m². Foram necessários seis meses para pegar oito bichos. “Eles aprendem que a porta da armadilha fecha e não querem entrar ali.” Além de saguis, vivem nas copas de árvores paulistanas bugios, sauás e macacos-prego.
Uma alternativa para driblar essa dificuldade, apontada tanto por Juliana Summa como pelo professor Edison Durigon, seriam as vacinas de iscas, usadas nos Estados Unidos para proteger os guaxinins da raiva. “As iscas talvez fossem mais eficientes, mas não sei se seria possível desenvolvê-las para febre amarela”, afirma a bióloga.
Dificuldades poderiam ser superadas
Questionado sobre a vacinação de macacos e sua viabilidade, o Ibama informou que tais questões deveriam ser direcionadas ao Ministério da Saúde.
Em agosto, a revista Science publicou reportagem que mostrava o trabalho de cientistas da Fiocruz na captura de bugios em Ilha Grande, Estado do Rio. Essa espécie, se infectada com o vírus, manifesta os sintomas. Por isso, tem o papel de sentinela – sua morte alerta as autoridades sobre uma possível ocorrência do vírus no local. Os saguis, por outro lado, podem hospedar o vírus sem dar sinal algum disso.
Depois de sedar um bugio com tranquilizante, os pesquisadores checam suas gengivas, os olhos e os genitais atrás de uma coloração amarelada, segundo a reportagem da Science.
Em seguida, eles recolhem amostras de sangue e testam o animal para o vírus da febre amarela. Para evitar que o bugio vire presa fácil para outros animais, os cientistas o mantêm preso até que recupere totalmente a consciência, o que pode levar mais de uma hora.
“Nesses rastreamentos, vejo veterinários colocando chips (de monitoramento), tirando sangue do animal. Não poderiam aproveitar para vaciná-lo?”, questiona Massad.
Durigon pondera: “De imediato, vacinar a população que vive nos arredores dos parques com suspeita da doença é certamente a atitude mais adequada e eficiente, mas, a longo prazo, medidas como o controle de reservatórios e hospedeiros têm de ser prioritárias.”
A seu ver, a falta de investimento na vacina dos macacos seria fruto principalmente da falta de entrosamento entre áreas que já estudam os primatas. “O difícil é fazer os diferentes órgãos governamentais conversarem e tomarem atitudes em conjunto”, diz.
A febre amarela, no Brasil, tem perfil sazonal. Historicamente, o maior número de casos verificados em humanos ocorre entre os meses de dezembro e maio, quando o maior volume de chuvas e as altas temperaturas levam ao aumento do número de mosquitos.
R7