O número de brasileiros se mudando para Portugal vem crescendo a cada ano — e muitos relatam que estão sofrendo com preconceito e xenofobia ao tentarem achar um lugar para morar.
A língua comum é um dos fatores fundamentais para essa escolha na procura de uma maior qualidade de vida fora do Brasil.
Segundo dados do governo português, até setembro deste ano, foram contabilizados com manifestação de interesse para moradia no país, 392.757 brasileiros — mais do que o dobro do registrado em 2019. Esses são os números formais de quem tem contrato de trabalho e preenche outros requisitos do governo.
Mas o momento de procurar um local para morar não tem sido fácil para muitos.
Não existem dados oficiais sobre denúncias feitas aos órgãos do governo por esse motivo.
Mas não faltam relatos.
A advogada Márcia Alcantara foi transferida pela empresa que trabalhava no Brasil para Portugal em agosto de 2023. Todos os custos da mudança foram pagos e uma empresa de realocação foi contratada para ajudá-la a achar um imóvel onde viveria com seu marido e dois filhos.
Mas apesar de toda essa infra-estrutura disponibilizada pela empresa, Márcia ficou com uma péssima lembrança de um dos proprietários:
“A pessoa que estava me ajudando a achar apartamento para alugar era uma portuguesa muito experiente. Encontramos algumas opções na internet. Eu estava com ela quando ela ligou para um proprietário que, quando ela disse que era para cliente do Brasil, ele simplesmente começou a se exaltar”, conta.
“Ele disse que não alugava apartamentos para brasileiros, que são todos ‘fanfarrões’ e barulhentos, que colocam muitas pessoas na casa porque não têm condições, etc. Foi quando a portuguesa, com toda calma do mundo, disse que ele estava enganado, que eu era uma advogada, casada, com filhos e contrato de trabalho. Ao receber essas informações ele se acalmou um pouco e tentou voltar atrás, se explicar, mas aí quem não quis nem ver a casa fui eu, tamanho foi o desrespeito sem nem ao menos saber sobre minha história”
Restrições e burocracia
A corretora brasileira Amanda Barreto Mello, que trabalha com venda e aluguel de imóveis em Portugal desde 2015 e desde 2019 na agência imobiliária Remax, confirmou que existem certos argumentos que sempre são usados pelos proprietários como restrições aos brasileiros: “o que sempre ouvi, de forma geral, é que os brasileiros fazem mais barulho, escutam música alta e colocam mais pessoas em casa do que foi dito inicialmente.”
E continuou: “Alguns proprietários, às vezes, já têm os ‘perfis’ que não querem. Mas noto que de 2015 para cá, ocorreu um pouco de mudança na mentalidade destes proprietários, pelo menos aqui em Lisboa. Muitos brasileiros de classe média, classe média alta, doutorandos, empresários começaram a vir para cá e notamos que houve uma ‘melhor aceitação'”.
Mas, mesmo assim, quando perguntada se já escutou claramente de algum proprietário que não gostaria de alugar para brasileiros, a corretora afirmou que sim:
“Já escutei duas vezes. Em uma delas a proprietária disse ‘não quero pretos e nem brasileiros! Sei que a Amanda é brasileira, não sou preconceituosa, mas tive más experiências.’”. Amanda acrescenta que “a falta de fiador, não ter a declaração do imposto de renda e não ter um contrato de trabalho são, sem dúvidas, as maiores dificuldades que os brasileiros têm na hora de alugar um imóvel aqui em Portugal”.
É o mesmo que afirma a portuguesa, Ana Aires Pereira, corretora da Century 21 Le Quartier, desde setembro de 2021. Ela atribui a dificuldade de locação dos brasileiros (e de pessoas de qualquer outra nacionalidade) às questões financeiras e burocráticas.
“As dificuldades que os brasileiros têm são exatamente as mesmas de todos aqueles que não têm como provar os seus rendimentos ou não têm histórico suficiente para dar as garantias que os senhorios solicitam, inclusivamente os portugueses”, diz Ana.
“A falta de fiador é outro dos obstáculos frequentes. Os senhorios pretendem diminuir o risco de não cumprimento, solicitando frequentemente três rendas e duas cauções, fiador e contratos de trabalho sem termo, condições difíceis de reunir em simultâneo para quem procura arrendar um imóvel e acabou de chegar do estrangeiro”, e finalizou “os proprietários não discriminam pela nacionalidade ou naturalidade do arrendatário, mas antes pela falta de cumprimento dos requisitos que determinaram.”
A visão de um proprietário
Antonio Valente é português e investidor imobiliário; ele possui vários imóveis e os utliza para locação de apartamentos inteiros ou quartos individuais para sua renda mensal.
“Como só alugo casas muito pequenas, o mercado destas casas são os estrangeiros, e desde que tenham documentação, trabalho, rendimentos compatíveis, com o valor da renda e fiador, continuo a alugar a todos, inclusive a brasileiros”.
Porém, em seguida, relatou experiência ruins que teve com alguns de seus inquilinos: “Experiências, existem boas e más. Como em tudo existem boas e más pessoas. Tive alguns problemas com pagamentos com brasileiros que fugiram sem pagar e um deles destruiu a casa. Os brasileiros não respeitam as tradições portuguesas. Fazem barulho, colocam um excesso de pessoas no imóvel e isso cria auto defesas dos proprietários”.
Quando procurada pela reportagem sobre a resistência de proprietários portuguesas em relação à inquilinos brasileiros e a quantidade de brasileiros que alugam imóveis em Portugal, a Associação Nacional dos Proprietários (ANP), respondeu apenas que “não pode se pronunciar sobre esse assunto pela falta de dados”.
Segundo informações do site, a ANP nasceu de “um grupo de cidadãos que para lutar pelos seus direitos e defendê-los da voracidade de quem vê neles uma fonte inesgotável de receitas, deram forma ao Movimento de Proprietários”.
Uma jornalista brasileira, que preferiu não se identificar, contou que ficou traumatizada pela forma como foi tratada por uma proprietária angolana no primeiro apartamento que alugou logo que chegou a Portugal:
“Ela falava sobre o meu jeito de vestir, sobre o que eu cozinhava, sobre o que eles viam na TV e noticiário sobre as brasileiras, sobre como as pessoas de Portugal nos enxergavam e como eu devia me portar. A senhoria morava embaixo do meu apartamento e subia sempre para me ‘fiscalizar’. Ela controlava o tempo do meu banho, falava que era absurdo que durasse 15 minutos, me tratava como burra por ser brasileira”, desabafou.
O canal para denúncias
Em casos como esse, ou qualquer outro de xenofobia, os brasileiros devem procurar a Comissão Para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão do governo Português. É possível fazer uma queixa através do site ou pela Linha de Apoio ao Migrante, que funciona de segunda a sexta das 9h às 19h. Rede fixa: 808 257 257 (custo de chamada local) e Rede móvel: 218 106 191. O CICDR oferece apoio jurídico gratuito para quem precisa.
G1