Passados quase três meses desde o registro do primeiro caso de covid-19, o Brasil contabiliza mais de 200 mil infectados e 14 mil óbitos pela doença.
Somados a estes números, entram fatores como o isolamento social, o desemprego, o medo de ser infectado ou de que alguém próximo contraia o vírus, o tédio do confinamento, entre outros ingredientes que podem ser potencialmente nocivos ao bem-estar mental.
Em boa parte do país, faz dois meses que milhões de pessoas estão reclusas em casa, saindo para fazer somente o essencial. Algumas delas nem isso, como é o caso dos idosos.
“Os idosos foram subtraídos do mundo automaticamente, porque foram colocados, a princípio, como as pessoas que primeiro morreriam. Foram reclusos primeiro, já tiveram uma necessidade de poupar a vida e vão ter uma dificuldade de voltar [à rotina]”, observa o psiquiatra Adilon Harley Machado, da Casa de Saúde Santa Marcelina.
Mas ao final deste momento, acrescenta o médico, todos serão afetados de alguma forma.
“A gente entender o mundo como um ambiente seguro vai ser muito difícil. Eu acho que não vai ter um indivíduo que vai sair disso sadio. Alguns mais resilientes vão se afetar menos, mas todo mundo vai se comprometer de alguma forma.”
Os efeitos colaterais da pandemia no Brasil já começam a ser percebidos nos consultórios médicos, mas devem ser mais evidentes em um futuro próximo.
“A gente tem visto meio que como fases. Inicialmente, o que surgiu foram os pensamentos relacionados à ansiedade, por causa da incerteza, algumas pessoas também hipocondríacas. Depois que a gente começa a ver que as pessoas estão há mais tempo em casa, agoniadas, o tédio começa a aparecer mais. Começa a vir mais a depressão, porque conhecem pessoas que pegaram [covid-19] e morreram, a falta da família e o contexto de mortes em geral da pandemia”, relata a psiquiatra Maria Fernanda Caliani.
Machado acrescenta que, além da depressão e da ansiedade, a incidência de distúrbios alimentares e do abuso de álcool e drogas também aumentará durante e após a pandemia.
“A gente vai ter aumento de dependência química. As pessoas têm aumentado muito o consumo de álcool, de drogas. Vai ter o aumento da obesidade, porque as pessoas têm aumentado muito o consumo de doces.”
A explicação, segundo o psiquiatra, está na forma como buscamos nos satisfazer em situações como a atual.
“Quando começamos a ter esses desequilíbrios, nosso corpo vai tentar regular isso sozinho. Geralmente, quando a gente entra nesses estados mais depressivos e ansiosos, isso se dá por uma alteração nos neurotransmissores. A gente vai buscar esses neurotransmissores onde eles estão mais disponíveis. Sabe-se que existem alguns alimentos que podem oferecer esses neurotransmissores de uma forma mais rápida, mas acabam sendo um pouco traiçoeiros.”
Ele cita os carboidratos como exemplo. Esses alimentos dão uma injeção de serotonina, mas com efeito de curta duração. “É como se você fosse buscar doses de felicidade e acaba entrando em um ciclo de dependência.” O mesmo mecanismo também ocorre com álcool e drogas.
Há pessoas, entretanto, que já vão direto a um estado depressivo, com falta de disposição, isolamento ainda maior (não atendem telefone, não respondem mensagens), alterações do sono, tristeza sem motivo, falta de prazer a satisfação em atividades que antes eram interessantes. Todos esses são sinais que exigem atenção.
O contexto da pandemia pode também levar alguns indivíduos a desenvolverem TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), devido à preocupação excessiva com a higienização, principalmente.
Maria Fernanda pontua ainda a situação dos profissionais de saúde. Muitos deles começam a apresentar o transtorno de estresse pós-traumático.
“Eles estão diretamente envolvidos, vendo as pessoas morrerem, vendo as pessoas lutarem pela vida, com um grau de responsabilidade enorme.”
Um estudo publicado no periódico científico Asian Journal of Psychiatry no mês passado identificou que moradores de Hubei, província chinesa onde o novo vírus surgiu, apresentaram elevação dos índices de ansiedade, depressão, uso perigoso e nocivo do álcool, além da queda do bem-estar mental.
Entre 1.074 entrevistados, 29,1% relataram “beber perigosamente”; 9,5% admitiram uso “nocivo” de álcool; e 1,6% se disse dependente de álcool.
A ansiedade foi descrita, em diferentes níveis, por um terço dos chineses ouvidos, sendo que 12,9% destes a consideravam “forte”.
O percentual foi ainda maior nos que se disseram deprimidos: 37,1%, dentre estes, 9,1% em grau “forte” e 17,8% em nível moderado.
Os pesquisadores concluíram que inclusive quem não foi infectado pelo vírus está suscetível a desenvolver transtornos como ansiedade, depressão, abuso de álcool, devido aos “efeitos circunstanciais”, como ficar trancado dentro de casa por tempo indeterminado, infecção de familiares e amigos, morte de pessoas próximas e eventuais problemas financeiros decorrentes da crise.
Outro fator é destacado: a exposição à mídia, especialmente às fake news. “É por isso que o presente estudo recomenda manter-se conectado à mídia confiável e não se concentrar nas informações enganosas absurdas de mídia social”, ressaltam os autores.
O excesso de informações pode desencadear a ansiedade em alguns indivíduos e, consequentemente, levá-los a hábitos como comer e beber álcool em excesso.
Um dos caminhos para evitar isso é o filtro das informações que recebemos diariamente, explica Maria Fernanda.
“A gente tem que tentar buscar o equilíbrio. É como se a nossa vida emocional fosse a conta de um banco. Eu preciso controlar o que entra e o que sai para ter esse equilíbrio. Se eu gasto mais do que entra, vou ficar negativo.”
Mas como encontrar sentimentos positivos em um cenário tão adverso? “Temos que nutrir mais o lado positivo, de gratidão, otimismo, esperança, empatia. Eu sei que estou aqui preso, mas que bom que estou com a minha saúde, confortável, reconhecer as pequenas coisas”, sugere a psiquiatra.
“É claro que eu não preciso trazer para mim o sofrimento do mundo. Preciso ter a capacidade de conseguir agarrar as minhas vitórias e desfrutar o fato de ter uma vida confortável — e isso é o que preserva a minha saúde mental. Mas eu tenho que ter a capacidade de me solidarizar e de ter compaixão com o os acontecimentos, porque é isso que me faz humano”, acrescenta Machado.
Segundo os médicos, o momento exige ainda mais autoanálise. Isto significa também prestar atenção no que eventualmente esteja atrapalhando ou causando alguma aflição. Todos os transtornos apontados na reportagem podem ser tratados por profissionais, como psiquiatras e psicólogos.
O mais importante é reconhecer os sintomas não hesitar em procurar ajuda. A telemedicina é um facilitador, já que a pessoa não precisa sair de casa para receber aconselhamento e eventuais prescrições de medicamentos.
O CVV (Centro de Valorização da Vida) possui um telefone gratuito (188) que oferece apoio emocional a todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.
R7
Passados quase três meses desde o registro do primeiro caso de covid-19, o Brasil contabiliza mais de 200 mil infectados e 14 mil óbitos pela doença.
Somados a estes números, entram fatores como o isolamento social, o desemprego, o medo de ser infectado ou de que alguém próximo contraia o vírus, o tédio do confinamento, entre outros ingredientes que podem ser potencialmente nocivos ao bem-estar mental.
Em boa parte do país, faz dois meses que milhões de pessoas estão reclusas em casa, saindo para fazer somente o essencial. Algumas delas nem isso, como é o caso dos idosos.
“Os idosos foram subtraídos do mundo automaticamente, porque foram colocados, a princípio, como as pessoas que primeiro morreriam. Foram reclusos primeiro, já tiveram uma necessidade de poupar a vida e vão ter uma dificuldade de voltar [à rotina]”, observa o psiquiatra Adilon Harley Machado, da Casa de Saúde Santa Marcelina.
Mas ao final deste momento, acrescenta o médico, todos serão afetados de alguma forma.
“A gente entender o mundo como um ambiente seguro vai ser muito difícil. Eu acho que não vai ter um indivíduo que vai sair disso sadio. Alguns mais resilientes vão se afetar menos, mas todo mundo vai se comprometer de alguma forma.”
Os efeitos colaterais da pandemia no Brasil já começam a ser percebidos nos consultórios médicos, mas devem ser mais evidentes em um futuro próximo.
“A gente tem visto meio que como fases. Inicialmente, o que surgiu foram os pensamentos relacionados à ansiedade, por causa da incerteza, algumas pessoas também hipocondríacas. Depois que a gente começa a ver que as pessoas estão há mais tempo em casa, agoniadas, o tédio começa a aparecer mais. Começa a vir mais a depressão, porque conhecem pessoas que pegaram [covid-19] e morreram, a falta da família e o contexto de mortes em geral da pandemia”, relata a psiquiatra Maria Fernanda Caliani.
Machado acrescenta que, além da depressão e da ansiedade, a incidência de distúrbios alimentares e do abuso de álcool e drogas também aumentará durante e após a pandemia.
“A gente vai ter aumento de dependência química. As pessoas têm aumentado muito o consumo de álcool, de drogas. Vai ter o aumento da obesidade, porque as pessoas têm aumentado muito o consumo de doces.”
A explicação, segundo o psiquiatra, está na forma como buscamos nos satisfazer em situações como a atual.
“Quando começamos a ter esses desequilíbrios, nosso corpo vai tentar regular isso sozinho. Geralmente, quando a gente entra nesses estados mais depressivos e ansiosos, isso se dá por uma alteração nos neurotransmissores. A gente vai buscar esses neurotransmissores onde eles estão mais disponíveis. Sabe-se que existem alguns alimentos que podem oferecer esses neurotransmissores de uma forma mais rápida, mas acabam sendo um pouco traiçoeiros.”
Ele cita os carboidratos como exemplo. Esses alimentos dão uma injeção de serotonina, mas com efeito de curta duração. “É como se você fosse buscar doses de felicidade e acaba entrando em um ciclo de dependência.” O mesmo mecanismo também ocorre com álcool e drogas.
Há pessoas, entretanto, que já vão direto a um estado depressivo, com falta de disposição, isolamento ainda maior (não atendem telefone, não respondem mensagens), alterações do sono, tristeza sem motivo, falta de prazer a satisfação em atividades que antes eram interessantes. Todos esses são sinais que exigem atenção.
O contexto da pandemia pode também levar alguns indivíduos a desenvolverem TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), devido à preocupação excessiva com a higienização, principalmente.
Maria Fernanda pontua ainda a situação dos profissionais de saúde. Muitos deles começam a apresentar o transtorno de estresse pós-traumático.
“Eles estão diretamente envolvidos, vendo as pessoas morrerem, vendo as pessoas lutarem pela vida, com um grau de responsabilidade enorme.”
Um estudo publicado no periódico científico Asian Journal of Psychiatry no mês passado identificou que moradores de Hubei, província chinesa onde o novo vírus surgiu, apresentaram elevação dos índices de ansiedade, depressão, uso perigoso e nocivo do álcool, além da queda do bem-estar mental.
Entre 1.074 entrevistados, 29,1% relataram “beber perigosamente”; 9,5% admitiram uso “nocivo” de álcool; e 1,6% se disse dependente de álcool.
A ansiedade foi descrita, em diferentes níveis, por um terço dos chineses ouvidos, sendo que 12,9% destes a consideravam “forte”.
O percentual foi ainda maior nos que se disseram deprimidos: 37,1%, dentre estes, 9,1% em grau “forte” e 17,8% em nível moderado.
Os pesquisadores concluíram que inclusive quem não foi infectado pelo vírus está suscetível a desenvolver transtornos como ansiedade, depressão, abuso de álcool, devido aos “efeitos circunstanciais”, como ficar trancado dentro de casa por tempo indeterminado, infecção de familiares e amigos, morte de pessoas próximas e eventuais problemas financeiros decorrentes da crise.
Outro fator é destacado: a exposição à mídia, especialmente às fake news. “É por isso que o presente estudo recomenda manter-se conectado à mídia confiável e não se concentrar nas informações enganosas absurdas de mídia social”, ressaltam os autores.
O excesso de informações pode desencadear a ansiedade em alguns indivíduos e, consequentemente, levá-los a hábitos como comer e beber álcool em excesso.
Um dos caminhos para evitar isso é o filtro das informações que recebemos diariamente, explica Maria Fernanda.
“A gente tem que tentar buscar o equilíbrio. É como se a nossa vida emocional fosse a conta de um banco. Eu preciso controlar o que entra e o que sai para ter esse equilíbrio. Se eu gasto mais do que entra, vou ficar negativo.”
Mas como encontrar sentimentos positivos em um cenário tão adverso? “Temos que nutrir mais o lado positivo, de gratidão, otimismo, esperança, empatia. Eu sei que estou aqui preso, mas que bom que estou com a minha saúde, confortável, reconhecer as pequenas coisas”, sugere a psiquiatra.
“É claro que eu não preciso trazer para mim o sofrimento do mundo. Preciso ter a capacidade de conseguir agarrar as minhas vitórias e desfrutar o fato de ter uma vida confortável — e isso é o que preserva a minha saúde mental. Mas eu tenho que ter a capacidade de me solidarizar e de ter compaixão com o os acontecimentos, porque é isso que me faz humano”, acrescenta Machado.
Segundo os médicos, o momento exige ainda mais autoanálise. Isto significa também prestar atenção no que eventualmente esteja atrapalhando ou causando alguma aflição. Todos os transtornos apontados na reportagem podem ser tratados por profissionais, como psiquiatras e psicólogos.
O mais importante é reconhecer os sintomas não hesitar em procurar ajuda. A telemedicina é um facilitador, já que a pessoa não precisa sair de casa para receber aconselhamento e eventuais prescrições de medicamentos.
O CVV (Centro de Valorização da Vida) possui um telefone gratuito (188) que oferece apoio emocional a todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.
R7