“Falta quebrar barreiras. A barreira do biotipo, da cor da pele. Quando tive consciência de que com minha arte posso me expressar com meu corpo e me aceitar do jeito que sou, caiu a ficha: Eu nasci para isso”. Ingrid Silva, bailarina brasileira da Cia Dance Theatre of Harlem, de Nova York.
Única extensão no mundo fora de Moscou o Bolshoi Brasil, instalado na cidade de Joinville (SC), é notoriamente reconhecido pelo belo trabalho que promove na formação de artistas cidadãos através da arte-educação. Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de acompanhar mais de perto o processo que a escola realiza anualmente para selecionar crianças e jovens bailarinos que vão receber, por 8 anos, formação gratuita em dança e disciplinas complementares. Diante disso, faço aqui uma ponderação com um olhar construtivo: o Bolshoi Brasil precisa sair da caixinha russa e despertar par a sua identidade brasileira.
Todo ano, milhares de sonhadores da dança se lançam nessa empreitada de conquistar uma das 40 vagas oferecidas pela instituição, com recordes de mais de 6 mil inscrições nas pré-seletivas realizadas no país inteiro. Um funil, na minha visão de observadora, muito mais subjetivo que efetivo quando se pensa nos critérios, no sentido e no propósito de descobrir, formar e revelar talentos do Brasil.
Criado em março de 2000 com o apoio da prefeitura de Joinville e governo de Santa Catarina, há 21 anos portanto, o Bolshoi Brasil, em que pese o excelente trabalho social de inclusão de crianças e jovens de baixa renda que promove, parece manter o olhar languidamente voltado para os ares gelados de Moscou. No entanto, as revoluções e evoluções ocorrem o tempo todo e por mais geniais que sejam ou tenham sido os métodos e descobertas na área da dança, elas fatalmente se renovarão em direção ao aperfeiçoamento trazido pelos novos tempos.
As audições que selecionam os bailarinos a serem beneficiados com a formação prestada pela escola, seguem ano após ano restringindo o perfil e a identidade de bailarinos. Enquanto percebe-se claramente uma busca preferencial por anatomia russa em corpos brasileiros, constata-se também que o Bolshoi vai descartando jovens com potencial extraordinário e de excelência para o balé, talvez por não se encaixarem – entre outros critérios nem sempre claros – aos parâmetros físicos e regras inflexíveis que vêm do leste-europeu.
Em sua visão delineada nas redes de comunicação, a instituição destaca a “tradição com capacidade de se reinventar” como um dos seus pilares. Essa iniciativa muito bem pontuada pelo Bolshoi Brasil, precisa, de fato, ser colocada em prática. Porque até mesmo a metodologia adotada pela escola e criada pela bailarina russa Agrippina Vaganova, considerada revolucionária à época, lá pelos idos de 1920, é passível de readaptação se houver um olhar tecnicamente mais sensível e voltado ao perfil do bailarino brasileiro e suas particularidades.
A história mostra que a arte sempre se renovou. O homem da caverna já dançava. E seus movimentos bailantes ficaram registrados na chamada arte rupestre: aqueles desenhos cravados em rochas e paredes das cavernas. A dança passou por todas as eras da humanidade. Desde o período paleolítico com seus movimentos vinculados à sobrevivência, ao neolítico, com seus rituais, oferendas e celebração à terra e à sua fertilidade. E seguiu se readaptando.
Na chamada “idade das trevas”, a Idade Média, mesmo com a igreja proibindo as manifestações corporais e fechando teatros, a dança existiu e sobreviveu. Foi espertamente recriada pelos camponeses durante os festejos de semeadura e colheita, com a camuflagem de personagens de santos e anjos. As danças milenares do antigo Egito, da Grécia e da Índia também misturavam movimentos de integração entre corpo e espírito para apresentar o seu balé ritualístico e sagrado. A dança estava ali, transformada.
No Renascimento do século XV, por exemplo, a dança se reeditou para acompanhar os intensos sopros de renovação na vida social e cultural das cortes. Os chamados “Triunfi” (triunfos) fervilhavam os palácios de Florença na Itália da era Médici. E foi lá que se apresentou, em 1459, numa festa de casamento, o primeiro triunfo considerado balé: uma mistura de dança, canto e poesia.
De lá pra cá, o balé saiu dos salões palacianos e ganhou os palcos de teatros, evoluindo sempre em técnicas, movimentos e autonomia, alçando voos bem maiores que aquelas cinco posições básicas criadas pelo músico e coreógrafo Pierre Beauchamp, da Academie Royale de la Misique et de la Danse, lá pelos idos de 1600 a 1700. Essas posições de pés, braços e de cabeça para balé são conhecidas até hoje, mas foram se atualizando ao longo da história, naturalmente com novos métodos e estéticas. Porque a arte é dinâmica, inventiva e não para de evoluir e apontar possibilidades.
O balé russo que hoje tem a sua maior expressão na Bolshoi Ballet Academy, do Teatro Ballet Bolshoi de Moscou, surgiu do encontro de dois estilos europeus: o nobre francês, do mestre Marius Petipa, e o forte virtuoso italiano de Enrico Cecchetti. Estes deram origem ao método russo, especificamente mais vital e adequado ao temperamento e ao físico dos bailarinos russos. Porém, os séculos XX e XXI chegaram soprando modernidade e trazendo revoluções, ousadias e descobertas inimagináveis, impulsionando a dança a participar dessa dinâmica, buscando novas técnicas, formas e movimentos. Com isso, surgem escolas, coreógrafos e profissionais abertos às transformações de um mundo que se aprimora e se conecta com a arte do seu tempo.
Estética criada para bailarino americano
Um exemplo clássico disso e no qual o Bolshoi Brasil deveria se inspirar, vem da própria Rússia. O coreógrafo russo George Balanchine, fundador da Escola de Bailado Americana, que resultou no New York City Ballet (1948), priorizou como meta a concepção de uma identidade estadunidense para a dança. Balanchine desenvolveu uma estética própria, respeitando o biotipo e as características dos bailarinos americanos: pernas e pescoços longos, busto imperceptível e cabeça pequena.
A estrutura física do bailarino brasileiro nem sempre será igual ou semelhante à do bailarino russo. Aliás, quase nunca será. Isso não significa que a grande massa de potenciais bailarinos nacionais não esteja apta para dançar balé ou tenha menos talento para deslizar nos palcos do mundo. O Bolshoi Brasil precisa buscar este ar de renovação e sair do conservadorismo estético-europeu, priorizando a sua própria identidade.
Mesmo mantendo a metodologia fantástica e eficiente que fez do Bolshoi russo a maior e mais conceituada escola de balé do mundo, há possibilidade de se formar, sim, um casting de bailarinos brasileiros fenomenais, talentosos, superiores e criativos; pronto para se destacar no cenário internacional da dança e a ser absorvido pelas mais importantes companhias de balé do mundo. Isso, em escala significativa, não através de meia dúzia de profissionais, apenas, como ocorre hoje.
O que se vê ao longo das exaustivas audições anuais do Bolshoi Brasil são milhares de crianças e jovens com extraordinário potencial, descartados dos seus sonhos, projetos e ânimos devido a essa busca ostensiva por perfis corporais distantes e sem senso de pertencimento. Naturalmente, sabe-se que as vagas são limitadas e que centenas de jovens não alcançam, por mérito, os resultados esperados, o que é normal num universo tão grande de mais de 5 mil inscritos. Mas, sabe-se também que inúmeros outros chegam às etapas finais mostrando relevante habilidade, porém são desconsiderados.
A ausência de feedback
No escuro, esses jovens voltam para casa sem qualquer tipo de resposta, sem a noção exata de onde falharam e de que forma podem se preparar para aperfeiçoar a sua arte. Tem sido observado por inúmeras famílias que o pós-seletiva não vem acompanhado de informações explicativas a respeito dos critérios utilizados e nem de avaliações sobre a melhoria dos candidatos, o que lhes permitiria seguir adiante em busca do aprimoramento. Tal atitude deixa a marca da ausência de empatia e de responsabilidade com o crescimento desses jovens, já que neste círculo vicioso, os bailarinos que não sucumbiram ao desânimo e à baixa autoestima, até desistindo da dança, voltam no ano seguinte e revivem tudo, participando de provas exaustivas que chegam a durar mais de sete horas de esforço físico e cognitivo. E, outra vez, sem qualquer compreensão do que poderá lhes trazer êxito.
O que deve ser ponderado nesse processo é que é vital sonhar e persistir, mas com a clareza e a percepção de como direcionar esses jovens para a concretização dos seus sonhos. É inadequado, até mesmo desumano, estimular crianças a buscarem a arte e depois dispensá-las sem qualquer estratégia pedagógica de acolhimento e de feedback sobre a sua performance, seus pontos fortes e pontos a melhorar. Em dinâmicas como essas, são facilmente observados graves danos psicológicos e emocionais, infantis. Adotar uma postura cuidadosa no retorno a esses jovens, ou pelo menos aos concorrentes finais, é essencial porque reflete diretamente no sucesso do seu desenvolvimento.
Mais assertivo seria, talvez, se a seleção de novos talentos ocorresse de forma autônoma e sem custos para os participantes, através da procura por perfis em academias de dança, studios ou outros locais promissores. Isso evitaria a movimentação de tão grande número de aspirantes a bailarinos, sabendo-se de antemão que a maioria que se desloca de seus estados e remotos cantos do país em direção à Joinville, não conquistará uma das raríssimas vagas preenchidas, inclusive, por critérios não muito claramente definidos.
Em seu edital de 2021, por exemplo, sabe-se que as datas para as duas etapas da seletiva são bem estabelecidas. No entanto, não há consenso claro sobre essa regra poder sofrer alterações a depender de qual seja o candidato ou de qual seja o seu potencial, o que gera dúvidas se todos os participantes são, de fato, avaliados nos mesmos dias previstos no edital. Também chama a atenção a regra estabelecida de que o candidato poderá ser dispensado a qualquer momento sem precisar cumprir todas as etapas. As razões não são expostas no documento. Os critérios de avaliação das duas etapas também são descritos de forma generalizadas, sem detalhar especificamente como se dará a verificação de aptidão física, habilidades técnicas- artísticas ou quais pontos essencais serão levados em conta pela banca examinadora.
A cada ano de seletiva nacional, para admitir 40 crianças (20 meninas e 20 meninos) na 1º série da escola, o Bolshoi Brasil inscreve de 5 a 6 mil candidatos. O valor da inscrição, R$ 25,00, apesar de simbólico, rende anualmente uma soma significativa para a instituição que tem personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e recebe doações da sociedade, apoio financeiro de grandes empresas como a Caixa, Santander, BMW, Philco, Britânia, entre outras, além de subvenções do governo de Santa Catarina e Prefeitura de Joinville.
A responsabilidade social que o Bolshoi Brasil promove e divulga, portanto, não deve apenas focar na garantia de sua sustentabilidade pela sociedade e governo. O resultado na vida desses jovens deve ser efetivo e concreto. Deve transcender o mero aprendizado para alcançar o brilho da própria arte, da consagração do talento, do voo profissional, da autossustentação e da qualidade de vida desses bailarinos. E aqui, sim, é preciso checar, de fato, qual é a métrica desse trabalho, hoje, no mundo. Onde estão os brasileiros saídos da Escola Bolshoi Brasil? Quantos vivem de sua arte e conquistaram seus objetivos? O volume é significativo para a estrutura e o aporte que a escola tem? Esses resultados são proficientes?
Que a missão do Bolshoi Brasil não seja apenas a de reproduzir exclusivamente linhas mestres de balé para russo ver. Mas, a de formar bailarinos brasileiros para o mundo aplaudir. Quando essa relevante questão tomar formas ainda mais práticas, a escola irá, de fato, alcançar o sucesso de sua missão que, com certeza, não é gerar uma casta de bailarinos limitados, transformados em professores de escolas de balé instaladas nas tantas esquinas de Joinville.
Porque o grande diferencial está justamente no despertar e forjar a verdadeira arte do bailarino brasileiro, respeitando as suas formas, sua estrutura, os seus jeitos, suas referências culturais e peculiaridades, formando, então, profissionais de excelência e com o mesmo nível competitivonão só dos companheiros russos, mas do mundo inteiro. Bolshoi Brasil, mostra a tua cara brasileira!
“Vou aplaudir no dia que o Brasil tiver uma bailarina negra profissional em uma companhia”. Ingrid Silva, bailarina, negra, brasileira, considerada uma das melhores bailarinas da nova geração do mundo.
Fotos: Instagram / Lucinda Grange
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Samuelita Santana é Jornalista