O Supremo Tribunal Federal (STF) tem desmembrado o inquérito sobre fake news remetendo pedidos de investigações de casos concretos à Polícia Federal, em uma manobra para colocá-los dentro do rito processual normal e tentar fazer com que tenham prosseguimento em ações na Justiça. Aberto neste ano de forma genérica e sem objeto definido, a mando de Dias Toffoli e relatado por Alexandre de Moraes, o inquérito apura a disseminação de notícias falsas, acusações caluniosas e ameaças contra ministros da corte.
O desmembramento já foi feito em ao menos cinco casos ao redor do país. Em dois, aos quais a reportagem teve acesso, tanto o Ministério Público Federal como a Justiça de primeira instância rejeitaram a manobra e mandaram arquivar as investigações. Os procuradores alegam “vício de origem” -quando os inquéritos não poderiam ter sido abertos.
O inquérito sobre as fake news corre sob segredo de Justiça no STF. A ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu o arquivamento da peça, criticada por juristas e procuradores. Para o ex-desembargador Walter Maierovitch, o inquérito, sem ter condições de apurar nada, atende a questões políticas e pessoais dos ministros.
Ao contrário de um inquérito normal -aberto e conduzido pela polícia a pedido de alguma instância da Justiça, do Ministério Público ou por iniciativa própria com base em suspeita definida de crime-, o das fake news foi criado e é comandado pelo próprio Supremo, sem acompanhamento do Ministério Público, além de não apurar nenhuma suspeita específica de crime.
Neste caso, a PF não conduz as investigações, só cumpre determinações do STF. O Ministério Público Federal não supervisiona o trabalho, como é praxe, nem sequer teve acesso ao inquérito. Além de abrir e conduzir a investigação sem supervisão, o Supremo, em última instância, pode vir a julgar eventuais ações com base na apuração. Apesar de prevista no regimento interno do STF, a situação não tem precedentes. Para tentar “esquentar” as conclusões e trazê-las para o rito processual normal, Moraes decidiu desmembrar casos concretos que surgem a partir da investigação genérica.
O STF faz um despacho pedindo investigação sobre tal fato ou pessoa à PF, que abre um novo inquérito com as informações levantadas, completa as investigações e entrega ao Ministério Público Federal, que tem a prerrogativa de decidir se o caso deve ser denunciado à Justiça ou não. Uma das investigações foi aberta em Pouso Alegre (MG). O objetivo era verificar supostos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional praticados por um cidadão que tinha feito críticas a ministro do Supremo em redes sociais.
O procurador Lucas Gualtieri solicitou o arquivamento do caso, decisão confirmada pelo juiz federal de Pouso Alegre. Segundo ele, não houve crime e, ainda que houvesse, a investigação tinha começado ilegalmente. “Não havia ofensa aos ministros mas sim uma manifestação mais contundente”, diz Gualtieri a reportagem. O procurador conta que a apuração foi considerada ilegal porque foi iniciada e aberta a pedido do próprio Supremo. Além disso, não houve escolha de um relator segundo a distribuição de processos do tribunal -o presidente do STF, Dias Toffoli, escolheu Moraes a dedo para cuidar do caso.
Por fim, o cidadão investigado não tinha direito a foro privilegiado no STF. Gualtieri conta que, se a investigação continuasse, o próximo passo seria fazer uma busca e apreensão. Ele pediu que o juiz notificasse o homem de que ele havia sido investigado mas que o caso fora arquivado. A Justiça negou o pedido e colocou sigilo no processo, que não existe mais.
“Uma das atribuições do Ministério Público é garantir que os direitos e garantias do cidadão sejam preservados”, afirma Gualtieri. “Há de fato uma situação de risco para as liberdades individuais.” Para ele, “a simples manutenção desse inquérito já configura uma situação de inconstitucionalidade”. Em São Paulo, outro “inquérito filhote” foi aberto, mas o MPF também pediu à 8ª Vara Federal Criminal que ele fosse descartado porque começou de maneira ilegal. A investigada é uma mulher, cujo nome não foi revelado e que já tinha alvo de medidas de busca e apreensão.
“O procedimento foi desmembrado e remetido à Justiça Federal em São Paulo e envolve pessoa sem prerrogativa de foro para ser processada e julgada no Supremo”, afirma a assessoria do Ministério Público Federal em São Paulo. “É inconcebível que um membro do Poder Judiciário [o ministro Alexandre de Moraes] acumule os papéis de vítima, investigador e julgador”, diz ainda a nota. O arquivamento foi feito em agosto. A assessoria do Ministério Público Federal em São Paulo informa que a Justiça já confirmou a decisão do procurador. Caso o juiz negasse, o processo seria enviado a Brasília para ser examinado por três procuradores do último nível da carreira. Eles avaliariam se a investigação deveria prosseguir ou precisaria mesmo ser enterrada.
Em entrevista ao programa Poder em Foco, do SBT, no último domingo (6), Dias Toffoli defendeu o inquérito das fake news e disse que, “enquanto for necessário, ele ficará aberto”. Para Toffoli, a peça cumpre papel importante “na defesa da instituição [STF] e de seus membros”. Na opinião de Maierovitch, desembargador aposentado do TJ-SP, o inquérito arranha ainda mais a imagem do STF junto à população.
“Está valendo para tudo: xingamentos na internet, censurar reportagem sobre o Toffoli, dar busca e apreensão na casa do Janot. É uma aberração jurídica dos tempos inquisitoriais, é espantoso.” Ele acredita que o caminho natural de todos os casos, independentemente de sua gravidade, é o arquivamento. Procurado, o novo procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que não comentaria o caso e esperará ser notificado em eventuais questionamentos legais. A Polícia Federal não respondeu. O ministro Alexandre de Moraes disse que não vai comentar o caso.