Crianças que vivem em periferias estão ainda mais expostas ao trabalho infantil durante a pandemia. Um estudo divulgado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) na terça-feira (18) revelou que o número de crianças envolvidas em atividades laborais aumentou 26% entre os meses de maio e julho em São Paulo. “A pandemia piorou uma situação que já era frágil”, afirma Adriana Alvarenga, coordenadora da Unicef e especialista em políticas públicas.
Segundo ela, as crianças estão fora da escola que proporciona um espaço de aprendizagem e atenção, o que as deixa em situações ainda mais precarizadas. “Para muitas, o processo de aprendizagem pela internet não é possível por uma série de dificuldades”, afirma. “Além de estarem fora das escolas, estão distantes dos serviços de assistência social, das ações nas comunidades. Com isso, há uma piora nos indicadores de violência.”
O levantamento realizado com de 52.744 famílias vulneráveis de diferentes regiões de São Paulo, que recebem doações da instituição, revelou ainda que no conjunto dos domicílios em que mora pelo menos uma criança ou um adolescente, a incidência de trabalho infantil era de 17,5 por 1.000 antes da pandemia. Depois, aumentou para 21,2 por 1.000.
A maior parte dessas crianças, de acordo com a coordenadora do órgão, trabalha em atividades informais. “Elas ajudam em mercados, em comércios locais, nas ruas vendendo itens, fazendo malabares. Para as meninas, existe ainda o agravante do trabalho doméstico”, afirma. “Além dessas atividades, há formas extremas de trabalho, como atividades do tráfico de drogas e formas de exploração sexual.”
A especialista em políticas públicas afirma ainda que uma preocupação das equipes do órgão que fazem a entrega dos kits de higiene durante esse período é a percepção de famílias formadas por jovens. “Muitas adolescentes grávidas buscam itens de higiene. Daqui algum tempo vamos observar se há ou não um aumento da gravidez na adolescência”, afirma Adriana. “Nesse sentido, o Estado deve pensar políticas públicas para que essas mulheres possam ter rendas para sustentar essas famílias.”
O levantamento percebeu ainda que entre os responsáveis pelos domicílios a predominância é de mães. São 79,1% de mulheres chefes de família contra 10,7% homens, que têm entre 41 e 43 anos. De acordo com o estudo, as mulheres também são mais afetadas no âmbito socioeconômico em que estão inseridas: 44,7% já estavam desocupadas antes da pandemia, em comparação a 36,1% dos homens.
Ao todo, 30,4% das pessoas responsáveis pelos domicílios perderam o emprego por conta da pandemia; 15,7% continuavam trabalhando, mas ganhando menos; e apenas 10,9% dessas pessoas estavam trabalhando normalmente. Isto é, a pandemia também teve impacto no trabalho para 46% das famílias, em que a pessoa responsável perdeu o emprego ou está ganhando menos.
Esse conjunto de fatores impacta nos cuidados às crianças e adolescentes. “Percebemos também uma redução na vacinação por medo de ir até os postos de saúde”, diz Adriana. “O desafio desse momento é fazer as crianças voltarem a ser crianças e buscar alternativas para que as famílias não sejam obrigadas a empurrar essa parcela para o trabalho.”
Outro aspecto percebido pelo órgão durante a realização da pesquisa foram problemas relativos à segurança alimentar. “As crianças param de ter acesso à alimentação. Elas se alimentam menos e de forma pouco saudável, o que impacta na formação.”
“Não sabemos se este é o pior momento porque a pandemia ainda não acabou”, afirma a coordenadora da Unicef em São Paulo. Mas, segundo ela, o que torna o cenário mais preocupante é a invisibilidade desta parcela da sociedade durante o momento de crise de saúde, sanitária e econômica. “Elas são invisíveis. Com exceção da discussão da volta às aulas, é como se não tivessem importância. Como não ficam doentes é como não precisassem de políticas públicas.”
A procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho Elisiane Santos afirma que os dados apurados no levantamento podem orientar políticas que precisam ser realizadas para o enfrentamento ao trabalho infantil. Entre elas, ela destaca a identificação das famílias e inserção destas em programas sociais, transferência de renda, acompanhamento socioassistencial e políticas emergenciais em razão da pandemia, em especial que atenda as famílias mais vulneráveis, em sua maioria composta por mulheres e negras.
Segundo a procuradora, o município de São Paulo foi notificado para o estabelecimento de uma estratégia específica para o atendimento de famílias e situação de vulnerabilidade. Como última consequencia, explica Elisiane, é feito o ajuizamento de uma ação civil pública.
“Já existe um déficit nesse tipo de políticas públicas: assistência social, geração de renda, programas de profissionalização para adolescentes. Elas devem ser pensadas de forma intersetorial para o enfrentamento do trabalho infantil e outras violações de direitos de adolescentes”, disse a procuradora.
Durante a pandemia, a procuradora explica que houve uma precarização maior da renda das famílias, do acesso das crianças à educação e a escola à distância, além das dificuldades com moradia. “Fica clara a necessidade de uma estratégia que leve em consideração este cenário.”
O governo federal também foi notificado pelo Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) para a construção de uma polícia nacional de proteção às crianças durante a pandemia. “Deveria ser formado um comitê integrado por pessoas de governo, movimentos da infância para pensar nessa política integral”, disse Elisiane.
“É preciso pensar em formas de obtenção de renda para mulheres que estão trabalhando no trabalho doméstico, em como manter a escola à distância para famílias vulneráveis. Os adultos vão para as ruas e acabam levando as crianças. O trabalho infantil das ruas é uma das formas em que essa parcela fica ainda mais vulnerável a outros tipos de violência.”
A procuradora acredita que, apesar dos avanços observados nas últimas décadas, o aumento do trabalho infantil vem sendo observado nos últimos três anos. “Uma das causas é o desmantelamento de políticas públicas. “A Constituição Federal estabelece a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente como prioridade absoluta.”
O levantamento ouviu famílias vulneráveis em nove distritos da Zona Sul (Campo Belo, Campo Limpo, Capão Redondo, Cursino, Grajaú, Jardim Ângela, Jardim São Luís, Parelheiros e Santo Amaro); oito distritos da Zona Leste (Belém, Cangaíba, Cidade Tiradentes, Guaianases, Itaim Paulista, Mooca, Ponte Rasa e São Mateus); sete distritos da Zona Norte (Brasilândia, Cachoeirinha, Casa Verde, Freguesia do Ó, Jaçanã, Santana, Vila Medeiros); e cinco distritos do Centro (Bom Retiro, Consolação, Pari, República, e Sé).
R7