De um lado do Largo do Passaindu, as toneladas de escombros deram lugar a uma estrutura de madeira que isola o local onde o edifício Wilton Paes de Almeida desmoronou há um mês, no centro de São Paulo. Do outro, pelo menos 500 pessoas, entre adultos e crianças, ainda se amontoam em barracas isoladas por um gradil.
São famílias que viviam no prédio que desabou e em ocupações do centro da cidade também em situações de risco. Pessoas que, apesar de terem visto ruir a oportunidade de ter uma habitação, veem na moradia temporária no largo uma forma de resistência. “A gente está lutando e vamos até o fim”, diz Silvia Cardoso, 39 anos.
A sombra rosada sobre os olhos combina com o batom nos lábios de Silvia. “É uma forma de a gente se esquecer disso tudo”, diz sobre o gesto de vaidade. Silvia vivia no espaço Tenda 1, localizado no entorno da região conhecida como Cracolândia, no bairro da Luz, em São Paulo. Dias antes do edifício Wilton desabar, Silvia havia visitado o prédio e escolhido o apartamento onde iria viver. “Só deu tempo de conhecer, ia começar a comprar tudo agora.” Ela havia pago o primeiro mês de colaboração para morar no 3º andar.
“Nem gosto de falar sobre isso. Me dá licença que vou ali tomar um copo d’água”, diz ela. Antes de se afastar, porém, ela aponta para a barraca em meio a diversas outras que disputam espaço na praça, onde as famílias se espremem para sobreviver. “Está bem arrumadinha. É tudo o que tenho”, diz sobre os itens que trouxe da antiga moradia. “Essa é uma história muito triste, tudo aconteceu de repente. Às vezes dá vontade de gritar de desespero.”
A diarista Fabiana Ribeiro da Silva Santos, de 38 anos, gostava da rotina que levava no primeiro andar da ocupação. Sem vontade de viver nos abrigos, Bia, como é conhecida, diz que morar na praça é mais seguro do que nos locais oferecidos pela prefeitura. “Aqui tem policiais por todos os lados e estamos controlando quem entra e quem sai das grades”, diz.
A dura rotina na praça não lembra em nada o conforto de que desfrutou por cinco anos em seu apartamento. “Eu tinha cozinha, tinha sofá, tinha cama e até TV de plasma. Hoje não tenho mais nada”. Fabiana afirma que conseguiu retirar os R$ 1.200, valor referente ao primeiro mês de auxílio-moradia oferecido pela prefeitura às vítimas da tragédia. Mas, afirma, quando vai procurar um lugar para viver, não tem nenhuma garantia para oferecer como contrapartida. “Só tenho minha barraca.”
O banho, diz ela, apesar de tão aguardado, é um dos piores momentos. “Dependemos do pessoal de outras ocupações que vem e nos leva para tomar banho”, afirma. “Tem dias que queria sumir, desaparecer. Daria tudo para ter minha casa de volta”, desabafa com os olhos marejados. Hoje, a diarista diz nada é tão dolorido quanto escutar da neta de dois anos: “Vó, a casa queimou”. Quase sem esperanças de conseguir reconstruir a vida, Fabiana diz que o volume de doações caiu muito. “Para nós, já acabou. A gente já está esquecido.”
A moradora do primeiro andar do edifício Wilton, Cícera Maria da Silva, vendia café para quem transitava pelas ruas do centro. Depois de perder todos os pertences com o desmoronamento do prédio, ela passou a viver na casa de um dos filhos, em Franco da Rocha, em São Paulo. “Ela só chora quando fala sobre os animais que morreram”, diz a filha Suzana Maria da Silva.
Apesar de ter obtido o auxílio-moradia oferecido pela prefeitura, Cícera enfrenta dificuldades para reconstruir a vida. “Estamos tentando reformar dois cômodos embaixo da casa do meu irmão para ela morar, mas esse dinheiro é muito pouco”, diz a filha. “Nesses últimos dias, tentei convencê-la de voltar para Pernambuco para se distrair, mas ela só queria poder voltar a vender café no centro como fazia antes.”
O balanço dos 30 dias após o desmoronamento do prédio do Paissandu é o pior possível. Para a psicóloga e pesquisadora da saúde mental de pessoas que vivem em ocupações do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), Cássia Fellet, o cenário piorou a cada dia. “O estado não está preparado para dar o acolhimento adequado às pessoas que precisam de moradia, que passam por tragédias ou que não tem onde viver”, diz.
A pesquisadora considera ruim a oferta de viver em abrigos. “Não existe a chance dessas pessoas restabelecerem a rotina. Elas têm de seguir as regras e os horários do abrigo. Não é possível reestabelecer a vida. A insegurança é muito maior.” Para Cássia, a prefeitura deveria gastar com a requalificação de espaços urbanos, não com a construção de novos locais. “Os abrigos não são espaços eficientes”, afirma.
“O mundo precário que elas tinham desabou. Era um mundo precário, mas ainda assim era um mundo. Agora, nem isso elas têm.”
De acordo com a prefeitura, há um grupo de mediação de conflitos que busca dialogar com as famílias que continuam no Largo do Paissandu. Segundo a administração municipal, o grupo identificou 132 famílias no local. Porém, apenas 26 delas estariam no cadastro da Secretaria Municipal de Habitação, realizado antes do desabamento, em março de 2018. “O restante é família atraída pelo grande volume de doações no local.”
A prefeitura afirmou, por meio de nota, que vai atender todas as famílias originárias e vítimas do desabamento com auxílio até a entrega e produção da moradia definitiva. “Famílias que não comprovarem vínculo com a ocupação do antigo edifício Wilton Paes de Almeida não serão priorizadas ou incluídas no atendimento habitacional definitivo”, afirmou. Segundo a administração municipal, foram contabilizados 1.702 pernoites nos abrigos, sobretudo no abrigo emergencial do viaduto Pedroso, no centro.
Das 171 famílias cadastradas pelo município, 144 famílias vítimas do desabamento começaram, segundo a prefeitura, a receber o auxílio-moradia pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo do Estado. O auxílio será oferecido pelo período de 12 meses, sendo R$ 1.200 no primeiro mês e R$ 400 nos demais. Após esse período, a prefeitura afirmou que irá assumir o pagamento mensal de R$ 400 até o atendimento habitacional definitivo.
Entre as famílias acampadas no Largo do Paissandu, muitas vieram de outras ocupações que, segundo elas, foram interditadas por apresentarem condições de risco. Maíra dos Santos, de 35 anos, vivia há um ano na ocupação Casa Amarela, também no centro de São Paulo. Mas há um mês compartilha as dificuldades que quem vive nas ruas do Paissandu. “Não sou arquiteta para saber onde é bom ou ruim para viver”, diz. “Depois disso, esperava que eles nos ajudassem a ter uma moradia.”
De acordo com a Prefeitura de São Paulo, a Justiça expediu mandado de reintegração de posse, ainda sem data ajustada para a desocupação do espaço. “A prefeitura estuda implementar um equipamento de cultura no local, já cadastrou e orientou todas as famílias sobre a necessidade de desocupação e ofereceu atendimento na rede socioassistencial do município”, informou por meio de nota.
A filha de Maíra, Vitória Elisia, de 15 anos, vive com a mãe nas barracas. “É horrível viver aqui. Se pudesse, sairia agora”, diz. Apesar da difícil rotina no largo, a menina cursa o 9º ano do Ensino Fundamental. “Quero estudar, trabalhar e ser jogadora de futebol. Nesses 30 dias, a garota afirma que a pior parte é a hora de tomar banho e a demora para a chegada da comida. “Sinto falta de tudo o que tinha antes, de acordar, tomar banho e ter uma cama para dormir.”
R7