A situação é cada vez mais comum. Uma pessoa tem dificuldade para dormir, vai a um médico, recebe a receita de um remédio e depois não consegue mais dormir sem ele.
Quando a caixa termina, começa uma peregrinação aos consultórios para conseguir mais receitas e continuar comprando o chamado tarja-preta.
Especialistas são unânimes: o uso de remédios para dormir tornou-se uma epidemia.
O cardiologista especialista em medicina do sono, Luciano Drager, da Faculdade de Medicina da USP, destaca que se trata de um problema de saúde pública.
“Isso é um importante problema de saúde pública porque muitos desses pacientes estão conseguindo receitas de remédios controlados ou meramente replicam receitas sem o menor acompanhamento. Então, o que você tem hoje é o uso desregrado, sem acompanhamento”.
A neurologista Andréa Bacelar, presidente da Associação Brasileira do Sono, explica que esta corrida atrás do medicamento tarja-preta para dormir não tem fim.
“Como o paciente gira em vários médicos, em várias especialidades, ele às vezes chega e diz ‘ah doutor, é que eu tomo este remédio e o meu acabou, o senhor poderia me dar mais uma receitinha porque o meu outro médico prescreveu? ’ Então acaba se tornando um ciclo vicioso”, destaca a especialista.
Tarja-preta sem receita
Em alguns casos, segundo os especialistas, a pessoa recorre ao mercado clandestino ou a algumas farmácias que criam sistema para burlar as regras e vender medicamentos sem receita.
Em 2013, a IBGE fez uma pesquisa em 69.954 domicílios para entender os hábitos de saúde dos brasileiros. Uma das perguntas, feita para maiores de 18 anos, foi sobre o uso de remédios para dormir.
Entre os entrevistados, 11.186 disseram que tinham usado algum tipo de medicamento para dormir nas duas últimas semanas. Destes, 9.767 garantiram que compraram comprimidos com receita médica. Isso significa que 1.419 pessoas conseguiram comprar medicamentos tarja-preta sem receita médica.
Medicamentos causam dependência
Entre os remédios mais receitados no mundo estão os benzodiazepínicos, um tipo de ansiolítico usado para tratar ansiedade ou distúrbio do sono.
O problema é que, quando usados a longo prazo de forma constante, eles podem causar dependência química.
“É um ciclo vicioso. É como se o cérebro tivesse pedindo uma nova dose da medicação para que ele possa responder da mesma maneira da noite anterior e, só assim, induzir o sono”, explica o cardiologista Luciano Drager.
A neurologista Andrea Bacelar explica que esses remédios são eficientes, o problema é que devem ser receitados temporariamente, para uso esporádico. Além disso, são medicamentos que devem ser receitados em situações bem específicas. Segundo a médica, o que se vê é a banalização destas medicações, usadas para qualquer queixa.
“Eu estou nervoso, estou preocupado, estou sem sono, tudo é motivo para usar um benzodiazepínico. E não é bem assim. Nem transtorno de ansiedade crônica a gente trata com tranquilizante. Essas medicações são para utilizar agudamente. Tem um problema agudo de pânico, por exemplo, ou teve uma crise convulsiva, alguma questão que tirou a pessoa do controle, nestes casos estas medicações são muito bem-vindas, mas não para uso contínuo e não para sono. Eles não são hipnóticos, eles são medicamentos que relaxam, tranquilizam, que até fazem relaxamento muscular, mas eles não são indutores do sono”, destaca Andrea Bacelar.
Para o neurologista Álvaro Pentagna, do Ambulatório de Sono do Hospital das Clínicas da USP, não são só as pessoas que têm mania de tomar remédios por si, os médicos também têm mania de prescrever de forma indiscriminada.
“Isso é uma coisa que a gente tem que pensar. Decidir um medicamento para ajudar a pessoa a dormir tem que seguir critérios. Você tem que entender melhor o seu paciente antes de simplesmente prescrever algo como ‘ah toma esse remédio para você dormir’. Dormir não é uma coisa que se faz à noite, é um processo que se inicia quando você acorda”.
O que o neurologista diz é que tudo o que uma pessoa faz durante o dia, vai ajudar a dormir; e tudo o que acontece durante a noite vai interferir no dia e na noite seguinte. O dormir e acordar é algo cíclico, “não simplesmente um desliga-liga”, segundo ele.
Drager destaca que, além de causar dependência, esses remédios levam a um sono de pior qualidade, que promove o relaxamento e descanso necessários para a reposição de energias.
“Quantitativamente o sono pode ser ok, mas qualitativamente é ruim, sem o descanso necessário. Ele mantém o prejuízo na saúde do paciente, impactando no dia seguinte”.
Quando maior a dose, mais difícil parar
Muitas vezes, quando o paciente procura um médico especialista em medicina do sono, já é tarde demais. O organismo já está dependente daquela substância e a pessoa não consegue dormir sem a medicação, que acaba tomando em doses cada vez mais altas. É comum que, ao tentar parar com a medicação, o paciente passe por crises de abstinência.
“O paciente não consegue parar. Ele começa a ter sensações pela falta da substância, o receptor no cérebro que está acostumado a funcionar com aquele medicamento, ele vai gerar sensações ruins no corpo por conta da falta da substância: sudorese, taquicardia, mal-estar, alteração visual, sensação de ansiedade”, destaca Andrea Bacelar.
A médica explica que para conseguir deixar de usar a medicação, o paciente precisa passar por um longo período de “desmame”, na qual as doses são gradativamente diminuídas.
Mesmo assim, em alguns casos, para evitar o sofrimento do paciente, os benzodiazepínicos precisam ser substituídos, aos poucos, por outras medicações que não causam dependência química.
Efeitos colaterais a longo prazo
O uso prolongado, crônico, dos benzodiazepínicos pode trazer uma série de prejuízos à saúde, principalmente no que diz respeito às alterações de comportamento.
“A pessoa vai estar mais suscetível a acidentes em casa, quedas e fraturas, ou acidentes automobilísticos, déficit de atenção, de concentração, memória, tudo isso pode ser alterado cronicamente”, explica Drager.
A expectativa média de vida do brasileiro aumentou. A neurologista destaca que hoje uma pessoa vive 90 anos e o avanço da idade é o maior fator de risco para déficit de memória e para as demências em geral.
“Se eu agrego ao aumento da idade o uso crônico dessas substâncias, certamente vou acelerar e agravar essa questão da memória. O indivíduo que abusa de tranquilizantes certamente vai se queixar que a memória não está boa, que não está gravando as coisas, isso também está atrelado a estas substâncias”, explica.
Quem tem dificuldade para dormir e faz, ou não, uso dessas substâncias, deve procurar um médico especialista em medicina do sono para uma fazer uma avaliação completa que possa identificar as causas da insônia e, desta forma, indicar o melhor tratamento.
“Insônia não se trata somente com remédio. Existem outras estratégias que podem ajudar a melhorar a qualidade do sono. A insônia também pode vir acompanhada de distúrbios respiratórios e remédios para dormir não tratam esses distúrbios. Nós precisamos realmente acabar com esse uso indiscriminado de medicações que não são seguras a longo prazo”, conclui Drager.
R7