Marcos*, de 37 anos, foi preso por utilizar uma bicicleta produto de roubo. Ele permaneceu atrás das grades por um ano. A condenação, porém, determinou um tempo de encarceramento muito inferior ao que já havia cumprido: um mês e cinco dias. Alberto*, 39 anos, pai de cinco filhos, foi acusado pelo roubo de R$ 50, mas ao ser abordado pela polícia possuía apenas uma nota de R$ 5. Somente após viver cinco meses no cárcere, o Ministério Público de São Paulo pediu sua absolvição e ele retornou à liberdade.
Alberto e Marcos figuram na lista de milhares de pessoas que tiveram de enfrentar a rotina no cárcere sem antes ter passado por um julgamento. Assim como eles, 54 mil pessoas são submetidas às mesmas condições em São Paulo. De acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o estado possui 240 mil pessoas encarceradas. Pelo menos, 24% dos presos estão em situação provisória, o que gera um custo de R$ 70 milhões por mês aos cofres paulistas.
Com esse valor, seria possível construir em um mês pelo menos dois hospitais, como o Hospital Estadual de Suzano, inaugurado em abril desse ano, com 120 leitos, avaliado em R$ 38 milhões, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde. Também seria possível erguer cinco centros públicos culturais, como os construídos na zona leste da cidade, em 2011, com o valor de R$ 12,5 milhões. “É um desperdício de recursos públicos. A prisão provisória se transformou em regra e, em vários casos, a pessoa não precisaria aguardar pelo julgamento presa”, afirma Bruno Langeani, coordenador do Sou da Paz.
De acordo com Langeani, é possível estimar que o preso provisório custe ainda mais ao Estado do que o preso com pena em execução. “Há mais gastos com roupas, kits de higiene, transferências, escoltas e trajetos ao fórum”, diz. “É um valor que poderia ser utilizado para patrulhamento preventivo ou opções de lazer e cultura em bairros da periferia, que, muitas vezes, não possuem nenhum.”
Números do estado
Desde 2005, a taxa de presos provisórios em São Paulo oscila entre 30% e 40%, percentual levemente abaixo da média nacional. Em julho de 2016, segundo o Ministério da Justiça, o número de presos provisórios no estado chegou a 75 mil pessoas sem condenação atrás das grades – o que representava 31% da população prisional paulista. Hoje, o estado possui 54 mil presos aguardando julgamento.
No entanto, é preciso considerar que São Paulo abriga um terço de toda a população prisional do País. “A prisão provisória deveria ser absolutamente excepcional, e não a regra, como acontece”, afirma Marina Dias, diretora do IDDD (Instituto de Defesa ao Direito de Defesa). “Além de ter um custo social tremendo, tem repercussões gigantescas no orçamento público e no agravamento das condições de encarceramento.”
Para Marina, o uso abusivo da prisão provisória afronta a Constituição Federal, viola o direito à defesa e alimenta o ciclo de violência. “Os operadores da Justiça acabam sendo movidos, em grande medida, por uma cultura punitivista e pelo anseio da sociedade por mais segurança.”
Um levantamento do Sou da Paz aponta que cerca de 40% dos presos provisórios não são condenados a cumprir pena privativa de liberdade ao final do processo. “Entre deixar uma pessoa presa ou solta há uma série de alternativas penais”, afirma Langeani. “Em casos de violência doméstica, estabelecer uma medida cautelar pode ser mais efetivo. Um usuário preso como traficante pode ser integrado às centrais de alternativa penal.”
A coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Ufscar, Jacqueline Sinhoretto, afirma que pessoas condenadas ao cárcere por delitos pequenos sofrem sérias consequências desse tipo de penalidade. “Elas criam dívidas financeiras e morais em decorrência das condições de vida na prisão, sofrem com o isolamento porque as famílias não têm condições de arcar com os gastos para visita-la. E o gasto do governo não cobre as necessidades humanas da pessoa encarcerada: a alimentação é ruim e falta assistência a saúde”, diz ela que também é integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Por trás das grades
Às 18h30 do dia 1º de junho de 2016, Marcos foi preso em flagrante por receptação, no bairro Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Abordado por policiais em patrulhamento, ele teria confessado que havia adquirido a bicicleta, avaliada em R$ 30 mil, na região central pelo valor de R$ 1,5 mil, e teria admitido a certeza da procedência ilícita, segundo o boletim de ocorrência.
Durante a audiência de custódia, porém, ele negou ter conhecimento sobre a origem ilícita da bicicleta. Marcos disse que comprou o veículo em uma feira de trocas para dar de presente ao filho. Apesar disso, o juiz considerou que as condições de compra poderiam ser suspeitas e condenou Marcos a um mês e cinco dias. No entanto, ele já havia permanecido 365 dias atrás das grades.
No dia 8 de outubro do ano passado, Alberto, 39 anos, pai de cinco filhos, foi preso em flagrante, suspeito de roubo, na Brasilândia, também na zona norte. Acusado de roubar R$ 50 de um casal em um ponto de ônibus, e simular que possuía uma arma, Alberto foi revistado e possuía somente uma nota de R$ 5. O casal que o reconheceu, segundo o processo, estava embriagado e a quase um quilômetro do local em que teria ocorrido o crime. Com isso, o Ministério Público pediu a absolvição de Alberto, que só foi colocado em liberdade cinco meses depois de permanecer do Centro de Detenção Provisória.
No mesmo bairro, o ajudante de pedreiro, Tiago, de 23 anos, foi preso em flagrante no dia 23 de março do ano passado por tráfico de drogas. Ele ficou preso por quatro mese, respondendo por um processo por tráfico de drogas, antes de passar pelo julgamento. O juiz, porém, considerou que a droga era para uso pessoal, sem qualquer indício de tráfico.
“Quando uma pessoa é privada de liberdade, por uma semana ou por seis meses, ela também é arrancada do mercado de trabalho, do convívio familiar e do ambiente comunitário. Reconstruir esse tecido social é algo muito difícil mesmo quando a pessoa é declarada inocente”, diz Marina. Para a especialista, isso provoca um isolamento social e econômico. Pessoas que passam pela prisão, segundo estudos, estão mais propensas ao abuso de álcool, drogas, ao suicídio e doenças mentais. “Na falta de uma rede de apoio, muitas reincidem e voltam à prisão.”
Como reduzir esse número
Ao contrário do que se imagina, a construção de presídios não consegue acolher o crescente número de pessoas condenadas ao regime fechado. Para se ter ideia, o déficit de vagas em São Paulo, segundo o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), é de 108 mil vagas. Considerando unidades de grande porte, com 280 vagas, seriam necessárias 382 novas unidades. Nos últimos 18 meses, foram inauguradas quatro unidades.
Uma das medidas apontadas por especialistas para reduzir o número de prisões provisórias é a ampliação das audiências de custódia, para avaliar a legalidade e necessidade da prisão provisória e para averiguar a ocorrência de tortura e maus tratos por parte da polícia. Além disso, entidades de direitos humanos propõem o fortalecimento da Defensoria Pública para garantir a defesa a todas as pessoas. “Ainda existem muitas cidades desatendidas e isso precisa mudar”, diz Marina.
Melhorar a rede de apoio às pessoas que passam pelas audiências e estão em situação de vulnerabilidade também ajudaria a reduzir o número de presos provisórios. “Se uma pessoa recebe liberdade provisória, ela precisa dessas centrais de alternativa penal para se integrar aos serviços. Se for usuária de drogas, será integrada à rede de apoio de saúde”, diz Langeani. “Essas pessoas chegam às audiências sem roupas, calçados. Não é a prisão que resolve essas vulnerabilidades.”
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade das pessoas
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