Desde que o atual prefeito de São Paulo, Joao Dória, lançou sua candidatura, usou como plataforma o retorno dos limites de velocidade na cidade aos níveis anteriores à redução promovida por Fernando Haddad (2013-2016). Assim que assumiu, para mostrar a que veio, elevou o limite nas pistas expressas das marginais dos rios Tietê e Pinheiros de 70 km/h para 90 km/h. Isso causou uma discussão apaixonada em que se ouvem os mais estapafúrdios argumentos e os comentários mais dramáticos. Quem tem razão? A boa e velha matemática, aliada aos conhecimentos de física, podem ajudar a responder essa questão.
Os visceralmente contra alegam que o número de acidentes vai subir. É provável que haja algum aumento, porque a habilidade na condução é limitada para a grande maioria da sociedade. Velocidade mais alta exige reflexos mais rápidos, o que pode estar fora das condições biológicas dos motoristas normais. Com a idade, mesmo pilotos profissionais perdem reflexos — imagine-se o que acontece com os recreativos, mesmo que usem o carro no cotidiano.
Numa velocidade maior, o tempo para interpretar a realidade diminui, mas o cérebro pode não acompanhar: assim, eventuais acidentes serão sempre mais graves
Numa velocidade maior, o tempo para interpretar a realidade diminui, mas o cérebro pode não acompanhar. Isso pode causar uma diferença ainda maior que os 69% calculados pela fórmula. Assim, mesmo que as medidas de segurança — que deveriam ser adotadas, qualquer que fosse a velocidade máxima — evitem acidentes, as exceções serão sempre mais graves. Isso é físico, não há o que discutir. Resta saber se há algum ganho para a sociedade no trânsito urbano, posto que o discutido aqui não vale para rodovias.As medidas suplementares de segurança podem ser um lenitivo, mas nada suplanta o fato de que um acréscimo de 30% na velocidade corresponde a 69% mais energia a ser dissipada nos impactos. Se um carro de uma tonelada batesse a 70 km/h em um muro, a pancada representaria 18,9 toneladas; a 90 km/h seriam 31,3 toneladas. É evidente que a simples aplicação da fórmula da energia cinética é ingênua: qualquer motorista não suicida pisaria no freio e, se a intenção fosse se matar, não haveria mesmo por que respeitar o limite de velocidade, já que não estaria aqui para pagar a multa. Aí entra a rapidez de reflexos.
Suponhamos que os automóveis tenham, em média, cinco metros de comprimento e que a distância até o veículo à frente seja de fixos dois segundos. Assim, 70 km/h representam 19,44 metros por segundo (m/s), o que dá uma distância de 38,88 m ao carro à frente. Somada essa distância ao comprimento do veículo, cada carro ocupa um espaço de 43,88 m. Portanto, passa 0,44 carro por segundo em nossa via imaginária (a fórmula é N = V/D, onde N é o número de carros, V é a velocidade em metros por segundo e D corresponde à soma do comprimento do carro à distância ao veículo da frente).
Se a velocidade for de 90 km/h (25 m/s), resguardando os mesmos dois segundos do carro da frente (o que resulta em 50 m), teremos um espaço total por carro de 55 m. Isso significa que, graças à velocidade maior, passa 0,45 carro por segundo em vez de 0,44. O acréscimo à vazão da via é pífio. Numa hora, teríamos 1.595 carros a 70 km/h ou 1.636 a 90 km/h. Será que o aumento de 28,57% na velocidade se justifica para um acréscimo de menos de 3% da vazão, representados por 41 carros por hora?
Parece que não, porque o tempo total de viagem não vai cair de modo significativo, como se verá a seguir. Uma via pública é como um cano: se ela é capaz de desaguar somente 1.600 carros por hora, aumentar a velocidade pode não aumentar a vazão por causa da perda de carga, que aqui se representa pela variação da distância entre os automóveis.
Para melhor entendimento, suponhamos que a velocidade seja de 1 km/h. O número de carros por hora (para uma só pista, sempre) seria de 180 carros, porque seriam 28 cm percorridos por segundo e o comprimento de cada veículo continuaria de 5 m. Assim, o espaço ocupado pelo carro, aplicando-se a mesma margem de dois segundos, seria de 5,56 m — o comprimento do carro ocupa, nesse caso, mais de 90% do espaço. Feitas as contas, caberiam 180 carros por quilômetro (1.000 m divididos por 5,56 m), só que eles estariam andando tão devagar que a vazão da pista seria pífia.
Como seria nas velocidades vigentes antes e depois da alteração pelo prefeito? A 70 km/h, o comprimento do carro em relação ao espaço total (5 m/43,88 m) cai para 11,39%, de modo que cabem 23 carros por quilômetro. Como eles estarão andando bem mais rápido que no exemplo anterior, passarão 1.595 carros por hora pela pista imaginária. Caso a velocidade seja de 90 km/h, o comprimento cai para 9,09% do espaço (5 m/55 m) e o número de carros sobe para 1.636 por hora. E se a velocidade fosse infinita? A parcela referente ao carro tenderia a zero e o número de carros por hora tenderia a 2.000, mantendo-se os mesmos dois segundos de distância.
Com o aumento de 70 para 90 km/h, passa 0,45 carro por segundo em vez de 0,44: o acréscimo à vazão da via é pífio, apenas 41 veículos por faixa em uma hora
Suponhamos que nossa pista imaginária precise levar 10 mil carros, não importando se por um breve trecho ou de uma extremidade a outra, todas as manhãs e trazê-los de volta à tarde. A 70 km/h o processo levará 6,27 horas (10.000 carros divididos pelos 1.595 que passam por hora). A mesma tarefa a 90 km/h tomará 6,11 h (10.000/1.636), ou seja, somente 9 minutos e 36 segundos a menos. Para questões de logística, é isso que importa. Para engenharia de tráfego, a tarefa é de imensa complexidade, que nossa vã filosofia não consegue atingir.
Considere-se que os dois segundos fixos de distância são temerários, porque o espaço de frenagem e o tempo de desaceleração são diretamente proporcionais à velocidade. Se essa variável fosse analisada aqui, os resultados seriam ainda mais discutíveis: os dois segundos fixos deixariam de ser uma premissa verossímil — aliás, não são. A distância em segundos do carro da frente precisaria ser crescente para compensar, pelo menos, o espaço de frenagem.
O que aqui se discutiu não vale para as rodovias porque as distâncias são muito maiores, assim como a redução do tempo de viagem passa a ser significativa.
O que é preciso ter em mente é que o problema tem duas faces claramente distintas. Uma é o desconforto de guiar tão lentamente — como diz minha esposa, dá até sono. Os carros estão cada dia mais estáveis e silenciosos, o que reduz drasticamente a sensação de velocidade. A outra face é representada pela tarefa da engenharia de tráfego, que visa maximizar o número de carros deslocados, da mesma forma com que se pretende esvaziar um tanque para encher outro.
A tarefa é hercúlea e não pode ser discutida apaixonadamente. Antes de assumir argumentos ideológicos e partir para uma discussão emocional, paremos todos e façamos as contas para saber o que interessa ao coletivo.
uol