Visualizar alterações (abrir em uma nova aba)
Por: Murilo Queiroz
Como você enxerga a relação entre a culinária baiana e a Semana Santa?
A relação entre a culinária baiana e a Semana Santa, pra mim, vai muito além do que se come, é sobre memória, afeto e ancestralidade. Cresci vendo minha família reunida na cozinha nessa época do ano, mexendo panelas com cuidado e respeito, como quem reza. No meu ninho, a cozinha é sagrada, e na Semana Santa, ela ganha ainda mais força.
A gente troca a carne pela fé, mas não perde o sabor. Traz o peixe fresco, o leite de coco feito na hora, o azeite de dendê, ingredientes que carregam história, herança, força de um povo. Eu cresci vendo isso virar comida, virar oferenda, virar abraço.
Hoje, como chefe, trago essa vivência comigo em tudo que faço. A tradição da Semana Santa na Bahia é viva, é cheia de cor, de cheiro, de textura, e, no meu prato, ela continua sendo um jeito de manter minha raiz firme, minha fé ativa e minha mesa cheia de sentido.
Qual é a sua opinião acerca do valor atual dos alimentos que fazem parte da preparação das comidas típicas da Semana Santa?
O valor dos alimentos típicos da Semana Santa tem subido muito, e isso me preocupa, não só como chefe de cozinha, mas como alguém que cresceu vendo essas comidas como parte da nossa fé, da nossa tradição. O azeite de dendê, o bacalhau, o camarão seco, o leite de coco… tudo isso encareceu demais. E o problema é que esses ingredientes não são luxo, são cultura. São memória. São o que conecta a gente com nossos avós, com nossas mães, com o nosso chão.
Hoje em dia, muita gente precisa adaptar ou até abrir mão de preparar certos pratos porque o bolso não dá conta. E isso dói. Porque a comida da Semana Santa não é só refeição, é rito. É tradição passada de geração em geração. É a Bahia no prato.
Como cozinheiro, me esforço pra criar alternativas acessíveis, sem perder a essência. Porque mais do que manter a receita exata, a gente precisa manter viva a história que ela carrega. E essa história tem que continuar sendo contada na mesa de todo mundo, independente do valor do mercado.
Sexta-Feira Santa, muito vatapá, caruru, moqueca e comidas com dendê. Na sua opinião, qual é a importância de preservar a tradição e a cultura baiana nesta e em outras datas comemorativas?
Sexta-Feira Santa na Bahia tem cheiro de dendê, tem panela fervendo cedo, tem família reunida e fé misturada com sabor. É muito mais que vatapá, caruru e moqueca, é cultura viva, tradição que atravessa gerações. E pra mim, preservar isso é preservar quem a gente é.
A culinária baiana conta a nossa história. Ela carrega as marcas dos nossos ancestrais, dos povos que formaram essa terra, das mãos pretas, indígenas e populares que transformaram ingredientes em rituais. Cada prato típico tem um sentido, um símbolo, um porquê. E manter isso vivo, principalmente em datas como a Semana Santa, é manter nossa identidade firme, mesmo com o tempo passando.
Como chefe e como baiano, eu vejo na comida um instrumento de resistência. Enquanto a gente continuar cozinhando com dendê, rezando com comida e servindo nossas raízes, a Bahia continua viva em cada mesa. Preservar a tradição é garantir que o futuro saiba de onde veio.
A tradição de comer comida baiana na sexta-feira santa carrega um encontro de culturas fruto de um processo histórico, qual a importância disso para a construção de uma identidade do ser baiano?
A tradição de comer comida baiana na Sexta-Feira Santa é, pra mim, um reflexo vivo do que é ser baiano: um ser moldado pelo encontro, pela mistura, pela resistência. A gente não come só por comer, a gente celebra uma identidade que foi construída com dor, com fé, com afeto. Cada colherada de vatapá ou caruru carrega séculos de história.
Essa mesa posta na sexta-feira é resultado do encontro entre a cultura africana, indígena e europeia. O peixe no lugar da carne vem do catolicismo, mas o dendê, o inhame, o leite de coco, o modo de preparar… tudo isso vem dos nossos ancestrais africanos e indígenas. A gente pegou o que nos foi imposto, transformou com sabedoria e criou algo nosso. E isso é ser baiano.
Preservar essa tradição é mais do que manter um cardápio. É manter viva uma história de resistência cultural, de criação coletiva, de fé reinventada. É reconhecer que a Bahia é feita de cruzamentos e que é justamente isso que nos faz tão únicos.
Na sua opinião a tradição de consumir um cardápio recheado de dendê durante a sexta-feira santa está atrelada a um sentimento de identidade, pertencimento e valor afetivo? Se sim, porquê?
Com certeza essa tradição de consumir um cardápio cheio de dendê na Sexta-Feira Santa tá totalmente ligada a um sentimento de identidade, pertencimento e valor afetivo. Porque comer comida baiana nesse dia não é só cumprir um ritual religioso, é se reconhecer como parte de uma cultura, de um povo, de uma história que atravessa gerações.
O dendê, por exemplo, não é só um ingrediente. Ele é símbolo. É raiz africana viva na nossa panela, é memória das mulheres que aprenderam a fazer comida com alma, é cheiro que lembra casa de vó, que junta a família, que transforma a fé em sabor.
A gente se reconhece nessa comida. A gente sente que pertence a algo maior quando senta à mesa e vê um prato de moqueca, de caruru, de vatapá. É uma emoção que vem de dentro, que diz “isso aqui é meu, é nossa cultura, é minha história também”.
Por isso, preservar essa tradição é muito mais do que manter um cardápio típico, é manter aceso esse sentimento de pertencimento, é valorizar quem a gente é e de onde a gente veio.
Matéria por: Murilo Queiroz
16/04/2025