Salvador, 10 de outubro de 2025
Editor: Chico Araújo

Com 60 milhões de mulheres negras, o Julho das Pretas reforça que cuidar da pele negra é também cuidar da autoestima, da identidade e da memória

A cada 25 de julho, o Brasil se junta a outras nações da América Latina e do Caribe para reconhecer a força e a luta de mulheres negras. A data, que homenageia Teresa de Benguela, símbolo de resistência quilombola no século XVIII, é também um lembrete de que ainda há muito a ser conquistado.

No Brasil, mais de 60 milhões de mulheres se reconhecem como negras, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Elas compõem 28% da população e seguem enfrentando obstáculos históricos como a desigualdade de renda, a violência racial e de gênero, ausência de representatividade, barreiras estruturais no acesso à saúde, estética e bem-estar.

O setor de estética, em especial, ainda carrega uma herança colonial que se reflete em padrões de beleza excludentes. Uma pesquisa da Nielsen aponta que apenas 5,9% das vendas de cosméticos no país têm foco em produtos para pele negra, apesar de mais da metade da população brasileira se autodeclarar preta ou parda. Além disso, os itens desenvolvidos para atender às necessidades específicas dessa população custam, em média, até 50% mais do que os voltados para “todos os tons de pele”, dificultando o acesso e reafirmando a desigualdade. Essa ausência de equidade no cuidado estético é mais do que um problema de mercado: é uma questão política.

O “Julho das Pretas”, movimento criado por organizações negras brasileiras, tem justamente o objetivo de visibilizar essas pautas. Na sua essência, é uma convocação para que mulheres negras sejam vistas com complexidades, dignidade e direito à pluralidade estética. É mais do resistir, trata-se de afirmar que corpos negros merecem cuidado, tecnologia, escuta e pertencimento. Mas quem está criando esses espaços seguros de escuta e tratamento? Quem de verdade se dedica, na prática, a descolonizar o cuidado estético?

É dentro desse contexto que se destaca o trabalho da biomédica esteta Jéssica Magalhães, especialista em pele negra com mais de 10 anos de atuação. Nascida em Salvador, ela ocupa um lugar cada vez mais sólido na estética inclusiva, com uma prática que alia conhecimento técnico e vivência pessoal para oferecer atendimento sensível às complexidades dessa pele. Já passaram por seus cuidados nomes como Tarsila Alvarindo, Val Benvindo e Najara (NBlack), personalidades que, ao buscarem atenção, também sinalizam uma mudança de mentalidade no mercado da estética.

“Meu interesse surgiu da minha própria vivência. Antes de ser profissional da estética, eu era paciente, e passei por vários atendimentos tentando tratar minha pele e, principalmente, minhas olheiras, mas sem sucesso. Foi aí que decidi estudar para cuidar de mim mesma”, conta. A partir dessa experiência, ela percebeu que quase todos os procedimentos ofereciam riscos ou limitações para peles negras, mas raramente apresentavam alternativas seguras. “Era como se a nossa pele fosse sempre um desafio, e não uma prioridade”, reflete.

Para além da técnica, Jéssica construiu a sua atuação sobre um princípio claro, respeitar a identidade negra. Em seus atendimentos, não se trata de negar procedimentos estéticos, mas de realizá-los sem apagar traços, as histórias e as potências que cada rosto carrega. “Propor uma estética mais inclusiva é oferecer segurança técnica com sensibilidade humana, é cuidar da pele sem apagar a identidade de quem a carrega”, afirma. Ao romper com o modelo que impõe um padrão eurocêntrico como único parâmetro de beleza, Jéssica também convida mulheres a se enxergarem no espelho com pertencimento.

E esse convite ao cuidado como gesto de pertencimento aparece, por exemplo, na forma como a profissional lida com as histórias de seus pacientes. “Muitas pessoas chegam ao meu atendimento trazendo histórias de frustração com procedimentos mal orientados ou de nunca terem sido escutadas de verdade. E eu escuto de um local que não é distante, porque também passei por isso, senti a mesma dor, a mesma frustração”, explica. A escuta ativa e o acolhimento individualizado, aliados ao conhecimento científico, fazem com que o consultório funcione como um espaço de reconstrução da autoestima.

Ao longo dos anos, a biomédica tem trazido temas urgentes à tona, como a descolonização da estética, a ditadura dos procedimentos que apagam os traços negros, o uso constante de tranças e suas implicações para a saúde capilar, além dos cuidados sazonais específicos para peles negras, como no verão e no inverno. Também já falou sobre hiperpigmentação, melasma e os impactos psicológicos do apagamento estético que ainda assombra musas de escolas de samba e outras figuras públicas negras. Sua prática tem contribuído, assim, para ampliar o debate sobre quem está incluso, e quem é sistematicamente excluído, quando o assunto é beleza e saúde.

O cuidado estético pode, e deve, ser um espaço de construção de dignidade. O que acontece quando esse cuidado é moldado por profissionais que reconhecem e respeitam as particularidades da pele negra? Como seria se todos os corpos tivessem acesso a atendimentos que não anulassem suas identidades, mas que as valorizassem? A biomédica tem apostado diariamente nessas respostas.

“Eu escolhi estudar profundamente a pele preta porque entendi que esse cuidado precisava ir além, ele precisava ser político, acolhedor e transformador. Hoje, ser especialista em pele negra é minha forma de devolver pertencimento e segurança para quem, por muito tempo, foi deixado de fora desse lugar de cuidado”, conclui. É dessa combinação entre ciência e sensibilidade que nasce uma estética mais consciente, uma estética onde mulheres negras, latino-americanas e caribenhas, possam enfim se reconhecer inteiras.

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