Salvador, 7 de dezembro de 2025
Editor: Chico Araújo

“Z de zangão”: projeto aproveita vivências para alfabetizar no mangue

Na Vila dos Pescadores de Ajuruteua, no município de Bragança, no nordeste do Pará, o abecedário ensinado a crianças e adolescentes é diferente. Sentados em círculo em um galpão com estrutura de palafita, erguido por troncos de madeira que impedem que as marés inundem a escola, os estudantes associam o ambiente que os cerca a cada uma das letras. O “R” é de rancho, o “O” é de ostra, o “Z” ali não é de zebra, mas de zangão e o “M”, de mangue – ecossistema no qual estão imersos e do qual a maior parte das famílias ali retira o sustento.

“O que a gente faz aqui é com que eles identifiquem o espaço deles a partir da leitura. Explicamos, não pela escrita em si, mas pela fala, pelos desenhos, por jogos. Assim, eles conseguem identificar as letrinhas com aquilo que eles vivenciam diariamente”, explica a professora alfabetizadora Pâmela Gonsalves. As aulas fazem parte de uma das iniciativas do projeto Mangues da Amazônia, o AlfaMangue.

Além de promover o reflorestamento, o mapeamento do manguezal e das espécies que ali habitam, o projeto também é voltado para a educação ambiental e para as necessidades das comunidades que vivem nas áreas de mangue. O AlfaMangue surgiu a partir da identificação de uma dessas necessidades: muitas crianças e adolescentes estavam com a aprendizagem defasada ou não sabiam ler ou escrever. As aulas funcionam como um reforço ao ensino regular, em contraturnos e nos finais de semana.

A Vila dos Pescadores não possui escola, e os estudantes precisam ir à comunidade vizinha, a Vila do Bonifácio, para assistir às aulas. O problema, diz Pâmela, é que para isso precisam atravessar uma ponte, o que frequentemente não é possível.

“A maré enche e, então, essas crianças faltam muita aula, porque não conseguem atravessar a ponte. Elas têm dificuldade na escrita porque elas não vão muito para escola por causa da maré”.

Na comunidade, cerca de 25 crianças são atendidas pelo reforço. O AlfaMangue ocorre nos quatro municípios onde o projeto atua: além de Bragança, em Tracuateua, Augusto Corrêa e Viseu, atendendo, em cada localidade, de 20 a 25 crianças. Ao todo, envolvendo esta e outras iniciativas voltadas para educação ambiental, o Mangues da Amazônia chega a mais de 1,6 mil crianças de 7 a 11 anos em toda a área na qual atua. O projeto todo conta com 5,6 mil pessoas participando diretamente das ações e, nas aulas, o mangue é o centro.

“Sempre trabalhamos o manguezal. Ele é o nosso objeto de estudo e é também a nossa sala de aula. A gente realmente o usa como sala de aula ─ as raízes são nossas cadeiras para aprender lá também”, diz Pâmela. Os resultados já podem ser sentidos: “A importância da alfabetização é de ter leitura do mundo. Essas crianças conseguem se inserir na sociedade, conseguem mudar a realidade delas quando conseguem escrever seu próprio nome”.

Letras e peixes

Hévelly Fernandes, de 8 anos, é uma das estudantes atendidas pelo projeto. “Eu já sei escrever meu nome melhor. Eu aprendi coisas que nem eu nem eu sabia que existiam. Eu tenho um sonho na minha vida: ser pilota de avião. Só que, para isso, eu tenho que focar nos meus estudos. E eu tô focando”, diz.

No livro de estudos, ela desenhou o animal preferido que vive no mangue: um peixe. “Eu gosto muito de peixe, eu tenho um peixe, o nome dele é Rafael”, diz. “Eu aprendi que cuidar do mangue é bom porque do mangue vem no nosso alimento”.

Ao lado de Hévelly, a mãe, Rutelene Sousa, de 48 anos, acompanha orgulhosa os progressos da futura pilota. Rutelene vende os peixes que o marido pesca na região e é daí que vem o sustento da família.

“Saio 5h da manhã de casa, pego meu peixe e vou para Bragança vender, com ela. Aí, quando nós chegamos, ela vai para a aula. Ela estuda às 13h e sai às 17h. Quando ela vai pra lá, eu vou deitar um pouquinho, descansar. À noite, sou eu que estudo. Aí, de manhã, no outro dia, vou de novo para o meu trabalho”, conta Rutelene.

Ela percebeu que a filha tinha dificuldades na escrita e na leitura, e até chegou a buscar aulas particulares, mas isso não chegou a ser viável. “A minha filha tem muito conhecimento hoje em dia. Nós, pais, moramos na beira da praia, mas não temos tempo, às vezes, para levar o nosso filho, mostrar e explicar, porque o nosso dia a dia é muito corrido”, diz. “Hoje em dia, a minha filha pega uma cartilha e ela sabe ler”.

Com a filha estudando, Rutelene também se animou a retomar as aulas na Educação de Jovens e Adultos (EJA), em que passou a cursar o ensino médio, à noite. Ela diz que sempre foi um sonho, que acabou sendo adiado com o casamento, os filhos e a correria do dia a dia.

“A educação ensina muita coisa para a gente, abre muito as portas. Quando a gente é analfabeto, a gente é um cego de olho aberto. A gente não enxerga as coisas. Quando a gente sabe ler, sabe escrever, a gente vê as coisas com outro olhar, tem outro conhecimento”.

Mangue como inspiração

Em outra comunidade atendida pelo projeto Mangues da Amazônia, também em Bragança, na Vila do Tamatateua, é Edite Ribeiro da Silva que, aos 61 anos, está prestes a realizar o sonho de ter uma formação. Em dois meses, ela vai se formar em educação do campo no Instituto Federal do Pará (IFPA).

Edite coordena um grupo de mulheres que, na comunidade, cuidam no viveiro das mudas que serão plantadas nas áreas degradadas dos mangues. Elas também atuam na conscientização dos moradores e levam debates para as escolas.

“Minha mãe pescava, ela tirava caranguejo, minha avó também”, diz. “Às vezes, as pessoas não têm consciência do que estão fazendo dentro do manguezal. Não têm consciência do quanto nós, da comunidade de Tamatateua, precisamos desse ecossistema, de onde nós tiramos a nossa sobrevivência. Nossos pais, nossas mães, eles vivem do mangue. Eles pescam, eles tiram o caranguejo todos os dias”.

Edite se casou aos 15 anos, teve quatro filhos e seis netos. Os estudos, assim como os de Rutelene, acabaram ficando para depois. Mas ela nunca desistiu deles.

“Hoje, eu estou lá, estudando e ajudando também a nossa juventude, mostrando para eles a importância de se educar, de trabalhar, de cuidar, dentro daquilo que é nosso”, defende. “A gente tem que estudar para compreender, entender e buscar o conhecimento. O que é nosso direito, que às vezes nós temos, mas muitas das vezes é negado para nós”.

 

Agência Brasil

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