O cenário infantil brasileiro passou por transformações drásticas nas últimas décadas. Se antes as ruas eram tomadas por crianças jogando bola, soltando pipa ou brincando de esconde-esconde, hoje a imagem mais comum é a de pequenos com os olhos fixos em celulares e tablets. Essa situação reflete-se em números alarmantes: mais de 80% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos passam mais de duas horas por dia em frente a telas, seja em celulares, computadores ou televisores. O Brasil ocupa atualmente o quinto lugar no ranking mundial de sedentarismo, sendo líder na América Latina: 47% dos adultos e 84% dos jovens não praticam exercício físico suficiente.
O Impacto na Saúde Infantil
Esse comportamento já se reflete no aumento dos índices de obesidade infantil. O Ministério da Saúde aponta que uma em cada três crianças brasileiras entre 5 e 9 anos está acima do peso. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que, até 2030, o sobrepeso pode atingir 75 milhões de jovens em toda a América Latina, caso não haja mudanças nos hábitos familiares e sociais.
Os impactos, no entanto, não se limitam ao corpo. Estudos recentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que 72% das crianças avaliadas apresentaram sinais de depressão associados ao uso exagerado de dispositivos digitais. Problemas de sono, irritabilidade, dificuldade de concentração e atraso no desenvolvimento motor também têm sido registrados. Outro efeito cada vez mais comum é a chamada “fadiga visual digital”, com aumento de diagnósticos de miopia precoce e síndrome do olho seco em crianças. Para médicos oftalmologistas, esse fenômeno já é um desafio emergente da saúde pública.
Recomendações e Políticas Públicas
Em 2025, o governo federal lançou o guia “Crianças, Adolescentes e Telas”, alinhado às diretrizes da OMS. O documento recomenda que crianças até 2 anos não tenham contato algum com telas, que o uso seja limitado a uma hora por dia entre 2 e 5 anos, até duas horas entre 6 e 10 anos, e no máximo três horas diárias para adolescentes, sempre com supervisão. A publicação também sugere que crianças não tenham celular próprio antes dos 12 anos e reforça que o tempo de sono, de exercício físico e de convívio familiar jamais deve ser substituído por dispositivos digitais.
O Papel da Escola, da Família e da Sociedade
Para o professor de Educação Física, Luiz Ramon Abdon, que atua diretamente com crianças e adolescentes, o desafio vai além de simplesmente controlar o tempo de exposição. “A infância precisa de movimento, de contato humano e de experiências fora do ambiente digital. Quando a criança troca a rua, o esporte e a interação social por horas diante de um celular, ela não perde apenas saúde física, mas também oportunidades de aprendizado, autonomia e convivência. É papel da escola, da família e da sociedade criar condições para que o brincar e o exercício sejam prioridade”, afirma.
Abdon reforça que limitar o uso de telas sem oferecer alternativas de qualidade é pouco eficaz. “Não adianta apenas proibir ou reduzir o celular se a criança não tiver espaço para correr, jogar bola ou interagir com outras crianças. É preciso garantir ambientes seguros e estimulantes, onde ela possa explorar o corpo, desenvolver a coordenação motora e aprender a lidar com desafios reais”, explica.
Para ele, a responsabilidade deve ser compartilhada entre escola, família e poder público. “A escola pode e deve ampliar as oportunidades de movimento no cotidiano, mas a mudança não acontece apenas dentro dela. Os pais precisam assumir o papel de mediadores, estabelecendo regras claras em casa, mas também incentivando práticas que façam sentido para os filhos. O poder público, por sua vez, deve investir em espaços de lazer acessíveis e em políticas que promovam saúde desde a infância”, defende.
O professor também chama atenção para o aspecto social. “O sedentarismo e o uso excessivo de telas não afetam todas as crianças da mesma forma. Famílias de baixa renda muitas vezes têm menos acesso a espaços de lazer, esportes e alimentação saudável. Isso amplia desigualdades e coloca em risco principalmente os mais vulneráveis. Combater esse cenário é também uma questão de justiça social”, conclui.
Caminhos Possíveis
O alerta é claro: sem mudanças concretas, a atual geração corre o risco de viver menos e pior do que a anterior. Para evitar esse futuro, Luiz Ramon Abdon sugere que famílias e escolas adotem medidas simples e eficazes, como estabelecer regras sobre o tempo de tela, incluir exercícios físicos no cotidiano, valorizar jogos e brincadeiras da cultura popular, aproveitar espaços públicos da cidade e incentivar a participação nas aulas de Educação Física. São ações que, somadas, podem representar a diferença entre uma geração saudável e uma geração em risco.